sábado, 14 de junho de 2008

Igual e Diferente

Numa outra dessas postagens minhas aí para trás, um amigo aqui de São Luís (estou em Upaon Açu essa semana para um curso que fui convidado a ministrar) comentou que eu estava “igual e diferente”. A declaração paradoxal me chamou a atenção, claro – meu gosto por paradoxos é professado e sabido –, mas também porque me agrada pessoalmente a idéia de ser diferente mas igual.

Chegando aqui, logo me dei conta de que a afirmação do meu amigo tinha autoridade: sendo ele um cara perceptivo, e tendo vivido apenas em São Luís desde sempre, é óbvio que é larga e reiterada sua experiência com essa noção de “igual e diferente” (embora possa ser que, por isso mesmo, ele, e as tantas outras figuras perceptivas que vivem aqui, já não tenham como reconhecer a diferença na igualdade ou vice-versa – afinal, a gente sabe como o nariz se acostuma a odores e deixa de percebê-los).

São Luís é uma ilha-naufrágio, um barco ébrio encalhado junto à costa, cuja equipagem, enlouquecida e assolada por muitos cruzamentos estropiados, mal desconfia da própria insânia. Aqui, a ruína está em nossos calcanhares por toda parte, e o ar marinho rói sem piedade as ferragens das portas, as pinturas das paredes, e o aramado das almas. Tudo é embalado pelo ir e vir hipnótico das marés e sua brutal amplitude, e por isso todo mundo aqui, penso eu, segue a vida assim meio como sonâmbulo.

E falo sério. É espantoso como o maranhense é indolente, como parece que não está nem um pouco se lixando para a desgraça que se avoluma sob suas ventas (parêntesis para um mea culpa: não renego essa minha maranhensidão, não, pelo contrário: estou certo de que foi essa mesma palermice endógena que me impediu de colocar a conta de luz no débito automático, obrigando meu amor* - a quem eu pedi que molhasse minhas plantas na minha ausência – a ter que se desgastar em telefonemas para a Cemig, depois de constatar que minha energia estava cortada). Justificado pela minha condição, posso falar sem piedade.

Por exemplo: anteontem saí andando para a praia, por dentro dos bairros. É uma caminhada de uns vinte minutos, que vai dar direto na descida para a praia do Caolho, logo em frente a um condomínio residencial bastante conhecido aqui. As casas são todas imensas e aparentemente bem cuidadas, típicas das famílias de classe média-alta local – confirma-o a quantidade de pickups Toyota e Nissan que eu vi entrando e saindo das garagens. Mas, por incrível que possa parecer, as ruas de piçarra do bairro são um odioso esgoto a céu aberto, com mato alto cobrindo as calçadas. E isso a menos de 50 metros de uma das mais importantes avenidas da cidade!

Poderia dar muitos outros exemplos do gênero, todos evidência de uma péssima administração municipal, absolutamente incapaz de fazer cumprir os regulamentos urbanos. Mas como todos esses problemas apenas me parecem mais graves hoje, e não de todo novos, fico muito tentado a concluir que isso diz muito mais do maranhense em si – e do ludovicense em particular – do que de uma escolha política malfadada.

Não vou deixar essa visão unilateral das coisas gerar no meu leitor uma idéia errônea sobre minha cidade, mas por enquanto é isso que tenho a dizer. Obviamente vou ainda escrever bastante sobre minha viagem** (viagens são ótimas para estimular observações, porque, de repente, aquilo que não víamos que não víamos aparece), e aí o quadro ficará mais completo.

Tudo isso só para dizer que observar minha cidade com olhos de estrangeiro tem sido excelente para que eu entenda o que é ser “igual e diferente”. Já dizia meu pai: “Quem sai aos seus, não degenera” - e isso vale mesmo para toda uma linhagem de degenerados.


Vicente Fialho - INADMISSÍVEL!



De um lado e de outro, casas grandes de famílias de classe média-alta. Lá na frente, a Av. dos Holandeses e, mais adiante, a praia do Calhau.



Bastante apropriado - um sujão que se reproduz em alta velocidade!

** Esta postagem inicia uma série de outras que deverão vir, sobre minha experiência de ser estrangeiro na própria terra.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Sobre durar e ser efêmero


Aquele texto do Jabor musicado pela Rita Lee, "Amor e Sexo", é bem conhecido, quase lugar comum, devido à imensa popularidade que alcançaram texto e canção. Não vou aqui dar uma de intelectual metido a besta e dizer que a crônica do Arnaldo Jabor não é bacana, ou que sua versão poética não tenha ficado interessante - embora o som da Rita seja mais meloso do que é meu gosto. Colocado em forma de dualidades excludentes entre si e complementares, o tema ganha expressividade e profundeza, apontando ao mesmo tempo para as aporias do amor romântico e os paradoxos do sexo livre e da "indústria da sacanagem". Assumo que gostaria de ter escrito aquela crônica, muito embora duvide que minha palavra, pesada como é, o tivesse permitido.

Para falar sobre o que quero, começo observando que algumas daquelas "forma duais" de amor e sexo parecem apontar no sentido de que o amor aspira à duração, enquanto o sexo é breve. Basta ver: "Amor é propriedade. sexo é posse. Amor é a casa; sexo é invasão de domicílio." " 'O amor, se não for eterno, não era amor' (Nelson Rodrigues)." " O amor quer superar a morte. No sexo, a morte está ali, nas bocas..." "O amor vem de dentro, o sexo vem de fora, o amor vem de nós e demora. O sexo vem dos outros e vai embora." " Amor é o sonho dos solteiros. Sexo, o sonho dos casados. " Mas não estou dizendo que essa seja a mensagem do texto, até porque o intrincado dos diversos dualismos não permite uma solução unívoca; estou apenas anotando que esse velho clichê de que o amor é estável e o sexo se desvanece está presente ali.

Para reforçar o mote, vou repetir um trecho de informação já também bastante circulado:


"Segundo uma pesquisa sobre a natureza do amor e da paixão, feita recentemente nos Estados Unidos, em que foram entrevistadas 5 mil pessoas em 37 culturas, há uma série de evidências de que essa exaltação [da paixão] seja criada por um coquetel de substâncias químicas cerebrais e deflagrada pelo condicionamento cultural. Os pesquisadores observaram que esse tipo de emoção não dura mais que dois anos e meio, quando a pessoa começa a voltar a um estado mental relaxado. Em meados da década de 60 a psicóloga americana Doroty Tennov já havia chegado à conclusão de que a duração média de uma paixão é de 18 meses a três anos. Suspeita-se que seu término também se deva à fisiologia cerebral; o cérebro não suportaria manter eternamente essa excitação."*

Ok, vamos dar o braço a torcer: ninguém vive em eterno estado de graça, até mesmo porque assim o estado perderia a graça. Um olho exposto ao sol sem piscar durante um longo tempo no fim termina cego. Além do mais, a experiência da diferença está na intermitência, no atravessar e reatravessar de uma forma. Se fosse possível viver em eterna excitação passional, a volúpia, esse querer abismar-se, não seria tão interessante quanto é, sendo fugaz: as ardências que consomem o apaixonado logo perderiam a graça, ou se fariam mecânicas, previsíveis, e igualmente se anulariam.

Quer dizer então que o destino do amor é se tornar como uma coluna de granito, com uma ou outra eventual florzinha lhe brotando dos flancos? Já que "o amor é uma espécie de gratidão posteriori pelos prazeres do sexo" e "o amor vem depois, o sexo vem antes", este último está fadado a minguar, enquanto o outro, nobre, rebrilha em sua imortalidade? Quem já se deu conta da fenescência do corpo e sua submissa obediência à gravidade há de concordar, sobretudo se lhe pulsar uma veia romântica.

Eu, de minha parte, não estou bem certo. Por dois motivos.

Primeiro, porque acredito que a velhice não tem autoridade para nos roubar o tesão. E isso simplesmente porque, hoje mais que no passado, é possível envelhecer com saúde - no corpo e na alma. Obviamente, o tesão não é o mesmo ao longo da vida - tenho dificuldades em imaginar grupos de anciãos trotando alegremente pelas ruas à noite, em busca de aventuras, como sendo uma cena comum. Mas nem por isso deixa de ser tesão. Aliás, tanto bom amor quanto bom sexo reclamam higidez.

Segundo, porque tendo a acreditar que o "entendimento do corpo com outro corpo" (penso em Manuel Bandeira - "A Arte de Amar"**), quando verdadeiro e secundado por um sentimento mais profundo de compatibilidade e satisfação espiritual, pode se manter inteiro por prazo indeterminado. Não estou falando do corpo, saco biológico de humores e hormônios, ou pelo menos não apenas dele, mas do Corpo, esse lugar privilegiado da alma, e que a acompanha, na sua intimidade, mesmo quando a autoridade da razão imposta pelo eu o força a ir por um outro rumo. O corpo sabe, e fala, embora também seja preciso saber entendê-lo e escutá-lo.

Não tenho nenhuma intenção de meter meu bedelho em coisas moderninhas do tipo "poliamor", nem mesmo em fenômenos como a proliferação das "monogamias em série". Outro momento, quem sabe, embora tenha deixado pistas sobre minha visão pessoal sobre a questão na postagem anterior. Na verdade (novidade!), eu sei que os modelos de relacionamentos amorosos disponíveis para o freguês são sortidos. Mas o que importa, ao cabo, entre durar e ser efêmero, é a experiência da travessia - esse trânsito entre o carnal e o transcendental que só os amantes autênticos sabem fazer, e fazer, e continuar fazendo.


P.S.: Dylan Thomas, o louco Gigante Branco sobre a Colina das Samambaias, esclarece bastante o assunto, ao falar sobre "inspiração":
"Para mim, o 'impulso' poético ou a 'inspiração' é apenas a súbita, e geralmente física, chegada da energia para a perícia e o senso estrutural do artesão"
Não é menos, nem mais - a despeito daquele "apenas". Sem uma ou sem outra, a poesia murcha.




* Ler matéria sobre o papel da fisiologia hormonal no processo aqui.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Leveza


Reclamaram* comigo que esse blog anda meio pesadão, meio cabeçudo demais. Vá lá, não se deixa de ser quem se é por decreto, e por isso só me resta pedir paciência. Mas há um lado meu que é leve, tão leve que flutua longe - e é por isso mesmo que eu tendo a metê-lo na gaveta.

Assim, instado, resolvi aliviar um pouco e escrever este intermezzo.

Hoje fui almoçar com minha filha num restaurante perto da minha casa. É um lugar legal, com boa comida, bem freqüentado. Sempre vou lá, e talvez por isso mesmo tenda a ficar um pouco inerte para o espetáculo humano do cotidiano - mesmo poucas coisas sendo mais humanas que sentar-se à mesa para comer. Hoje, porém, estava particularmente sensível às presenças à minha volta e não pude evitar de prestar atenção.

E digo que estava sensível porque, por alguma razão, as pessoas me pareciam bonitas, bem dispostas, contentes consigo mesmas, realmente dignas de admiração. Logo ao meu lado havia uma mesa longa, cheia de ponta a ponta, com jovens na faixa dos 20 e outros jovens na faixa dos 40. Todos pareciam muito alegres de estar ali, e isso por si só já tirava toda a trivialidade da situação. Havia um clima de simpatia e gentileza entre aquelas pessoas que me contagiou. Um casal muito bonito - uma moça de lindos olhos verdes e um rapaz que parecia um galã de novela das sete - se afagava discretamente o tempo todo, e conversava alegremente com os outros, embora para mim fosse evidente que a verdadeira conversa estava naqueles dedos entrelaçados.

À minha frente, um outro rapaz, sozinho, comia um prato um tanto sem cor de salada, ele mesmo estando bem colorido, de cáqui, vermelho e verde escuro. Parecia feliz com seu repasto monocromático, mas seus olhos brilharam mesmo quando (e sei porque acompanhei seu olhar) uma dupla de moças muito bonitas passou por trás da minha cadeira e logo à sua frente. Virei a cabeça sobre o ombro direito e ainda tive tempo de ver como as duas eram realmente atraentes - uma delas, uma morena de pele homogênea e um pouco acima do peso, tinha um ar de inteligente, talvez por causa dos óculos. Na volta, o rapaz de novo as acompanhou com interesse, mas sem nenhuma atitude de rapina. Terminou de comer e foi embora tranqüilamente.

Mais adiante, três homens numa mesa conversavam. Um deles, o mais velho, era do tipo branco-avermelhado, com espessas sobrancelhas desbotadas, e ouvia quase sem falar nada, com uma clara satisfação estampada na cara. Os outros dois eram parecidos, e se não eram irmãos eram primos, e se não eram nada, na minha imaginação eram. Estavam com a barba por fazer, o que acentuava o tom másculo de suas vozes. Pareciam se divertir com algo inofensivo, e não foi difícil ver neles dois moleques relembrando alguma malcriação boba, sob as vistas condescendentes do pai.

Depois de passear tanto ao redor de mim, voltei os olhos para a lindeza logo debaixo do meu nariz. O prato que eu fiz para ela estava muito bonito e só com coisas que ela gosta, por isso não fiz esforço para que ela comesse tudo. Dei-lhe a comida na boca com toda paciência do mundo, e ela não derrubou nem cospiu nada. Eu tinha dito antes que a levaria ao shopping, mas como saímos de casa um tanto tarde, acabou que não deu. Mesmo assim, ela não reclamou, sobretudo depois que eu prometi que a levaria ao parque Guanabara ainda essa semana. Quando falei, ela pulou da cadeira, me beijou e me abraçou efusivamente. Uma moça que estava sozinha numa mesa atrás de mim, parou e ficou observando a cena, com um sorriso parado no canto da boca. Senti um orgulho imenso com aquilo.

Apesar do que possa parecer, eu não estava ali como quem contempla uma cena à distância. Eu era parte daquele episódio, e me sentia assim. O discreto casal, as lindas moças, os rapazes com cara de travessura, não estavam "lá fora", e portanto não se punham como objetos de desejo. Foi assim que me dei conta de que era bem provável que todas aquelas percepções fossem apenas um reflexo do que me ia por dentro - essa euforia sóbria, essa eletricidade circular que se acresce em mim a cada dia.
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Tenho me achado muito interessante esses tempos - atento, alerta, amável, absolutamente afinado com a verdade dos meus sentimentos. Sem querer, sussurro em silêncio, nas entrelinhas de tudo que digo e faço, o segredo do meu coração.



* Quem tiver sido se acuse - ou não!

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Apelo aos Revolucionários







Eu digo que sou conservador e sou conservador mesmo, mas não posso sair dizendo isso por aí sem me justificar, porque qualquer um que me conheça mais de perto certamente vai torcer a cara e dizer, em tom desconfiado ou de galhofa: "Tu, conservador? Conta outra, maluco!" Conto não, é isso aí, sou conservador sim!

Para todos os efeitos de direito, eu sou uma alma perdida, um doidão inveterado que se deixou corromper pelo discurso da lei - no caso, meu verdadeiro descaminho. Na minha ficha criminal constam: iniciação ao canabinismo aos 13 anos; infecção pelo vírus do hard rock aos 14, com dois anos de estágio em punk e pós-punk avançados; boêmia crônica a partir dos 16 - fato agravado pela minha atuação paralela como músico e minha posterior descoberta de Rimbaud e de todos os malditos clássicos da poesia, aos 17; aos 18, entrando na universidade, iniciam-se minhas atividades de quadrilheiro, na época já interdisciplinar (o curso de direito funcionava no campus, no mesmo prédio em que comunicação e economia, logo diante do prédio das humanas): movimento estudantil e movimentação cultural alternativa; aos 20, depois de uma temporada de epifanias espirituais no coração místico do Plananto Central, incorro em ovo-lacto vegetarianismo cominado com magismo, demonologia, parapsicologia, ufologia, cabala, candomblé e afins; isso afora um bocado de outros pecadilhos, de que terei a delicadeza de poupar o leitor sensível ou impressionável.

Mas isso tudo, gentes, é só a "história externa"; é só epifenômeno. O que permaneceu escrupulosamente intocado ao longo de todos esses anos e de todos esses capítulos da minha novela rocambolesca, foi o meu espírito conservador, meu senso de preservação. Afinal, ser conservador nada mais é do que isso: ter um sentido de preservação apurado e ativo. Um sentido de preservação, diga-se, que ultrapasse a mera continuidade da existência física. O conservador é alguem que considera as coisas permanentes mais satisfatórias, e ainda assim sabe que "a mudança é o meio de nossa preservação" (Burke).

Não desconheço que há grandes disputas intelectuais e ideológicas ao redor do conservadorismo como doutrina moral e política, e sei que sua definição e todos os seus parâmetros mudam bastante entre o Appel aux Conservateurs, de Comte, e The Conservative Mind, de Russel Kirk - isso sem falar nas desinteligências que há sobre o que é ser conservador em termos artísticos, econômicos, religiosos, jurídicos etc. Deixo isso claro porque aquele mesmo lá do começo, que questiona meu conservadorismo, pode imprecar - não sem certa razão - que muitos conservadores se vinculam a um paroquialismo ético incompatível com posturas mais modernas e avançadas no campo das relações sociais, e eu sinceramente não acho que mereça passar por comunitarista ou reacionário. Meu auto-proclamado caráter conservador não se alinha bem ao cânone: assim, só pode ser conservadorismo não-ortodoxo.


Deixem-me exemplificar. Barthes faz a pergunta: "Por que durar é melhor que inflamar?" Eu respondo, conservadoramente: porque se inflama e não dura é porque não tinha muito o que queimar, ou então porque o queimador está desregulado, e faz-se como quem come todas as refeições do dia em uma só, para não ter que se preocupar com isso mais tarde. E quem diz que nessa vida é preciso "beber de todas as águas", nunca teve uma desinteria daquelas, ou quer se vingar da própria burrice no fiofó alheio - afinal de contas, há sempre algo de didático na sina dos bois de piranha. Liberdade sexual feminina? Simetria inata entre os sexos? Bem, há estudos que demonstram que, em condições de relativo equilíbrio entre os gêneros, adolescentes atraentes que se mantém reservadas sexualmente possuem alto "valor de mercado" e geralmente atraem as melhores perspectivas de investimento parental masculino de longo prazo, ao passo que as "assanhadas" precisam adaptar suas estratégias para extrair pequenas parcelas de recursos (não estou falando de dinheiro ou bens materiais apenas) de uma série de homens. Não se pode negar que há quem se divirta assim, e ter um homem fixo à tiracolo não é necessariamente algo que uma mulher precise. Mas as implicações do corrente estado de frouxeza da moral sexual sobre a tessitura da sociedade são amplas demais para serem simplesmente desprezadas. A pusilanimidade masculina generalizada só confirma isso.

A essa altura do campeonato, já estou comprometido demais com minha auto-imagem "conservadora" para deixar de ir até o fim, então vamos. A verdade é que eu não creio em revoluções como meios conscientes de se chegar a uma dada condição preordenada - nunca cri -, e estou certo de que a única coisa realmente positiva dos momentos revolucionários é confiança na certeza de um passo ousado, que continua a ser essencialmente cego. Por isso nunca fui romanticamente envolvido com a esquerda, e por isso desconfiei a vida toda do materialismo histórico. Isso vale para todo tipo de revolução, e não apenas para as massas, mas antes e sobretudo para as elites (aliás, nada mais anti-conservador do que um noveau riche).
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E por saber que não é fácil ser conservador num mundo fragmentado por idiossincrasias de massa, fica aqui o meu apelo aos revolucionários: tenham amor por si mesmos e salvem os conservadores da extinção.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Un coup de dés e o koan de Mallarmé





"Um lance de dados jamais abolirá o acaso." É esse o mote principal do grande poema constelar de Mallarmé, matriz de toda poesia de vanguarda, móbile musicado de palavras reluzentes que seduziu e inspirou gerações de poetas-engenheiros, de Cummings a Chacal, de Valéry a Leminski, de Sousândrade e Maranhão Sobrinho aos irmãos Campos e Décio Pignatari. E apesar do complexo e fascinante bordado de formas e sons do célebre poema, a despeito de toda sua realização formal e conceitual, sempre o que me prendeu em seu vórtice foi o sentido enigmático dessa frase-guia, esse tipo de contra-senso mitigado que hipnotiza por não nos deixar imediatamente saber se se trata, de fato, de um mero mistério aparente, ou, ao contrário, se seu efeito ilusório não acaba mesmo nos dizendo algo sobre como funcionam nossos sentidos e como se dá nossa experiência deste mundo.

Como bom luhmmanniano que me considero, a frase não poderia deixar de me evocar a epistemologia da diferença, a racionalidade sistêmica autoreferencial e autopoiética, as leis da forma, a matemática fractal, as teorias da imprevisão e do caos, em suma, as múltiplas vertentes disciplinares reflexivas que incluem as dimensões da contingência, da arbitrariedade e do paradoxo no objeto que constróem ou transcriam, e portanto em si mesmas. E como bom curioso por assuntos de espiritualidade e quejandos, não poderia também deixar de lembrar de alguns koans da tradição zen. Isso tudo, por outro lado, terminava me remetendo à questão do terceiro excluído - e não o penso aqui estritamente no sentido lógico tradicional do tertium non datur, mas naquele que ele assume para o conceito de "observação" da moderna teoria dos sistemas. Deixem-me ver se consigo me fazer menos obscuro.

Poderíamos perguntar: que é um lance de dados se não o próprio acaso em ação? As randômicas combinações de seus possíveis e atuais desenlaces já não são a própria confirmação do acaso? Em outros termos: como jamais poderia algo (um lance de dados) excluir diretamente seu pressuposto (o acaso) sem se aniquilar junto? Ora, o problema aqui, então, nem seria tanto de contradição, pois não se pretende exatamente que algo seja e não seja, mas antes de tautologia - um lance de dados jamais abolirá o acaso porque, sendo o acaso nele tornado concreto, nunca poderá deixar de ser o que é enquanto for o que é. Com isso, desfeita a aura do vaticínio e sua grandiloqüência, sobraria tão somente a circularidade estéril de um silogismo vicioso. Mas a inquietação persiste: o que haveria num lance de dados de tão ameaçador que se fizesse preciso (re)afirmar a soberania da aleatoriedade diante de tal força?

Talvez o caso mereça uma segunda olhada: afinal, ainda é preciso pelo menos pagar um tributo à imaginação do autor, assim como à dúvida metódica.

E é mesmo bem provável que o erro esteja em identificar o lance de dados ao acaso em si - erro semelhante ao que se comete quando, pensando-se em decisões, se dão por coincidentes aquilo que se documenta na alternativa escolhida e o ato de decidir em si. Na verdade, o lance de dados não constitui a pura potencialidade aberta das oscilações probabilísticas, mas sim o preciso momento em que estas se fecham, rápida e inexoravelmente, no fato que se atualiza. Em outras palavras, o lance de dados é a violência/força (o Gewalt de Walter Benjamin) que interrompe a indecidibilidade concreta do acaso, e que, por assim dizer, dá-lhe forma. O lance de dados é o limite, o ponto de travessia; ele demarca a passagem de um estado de coisas a outro, opera uma diferença de complexidades, de opaca a transparente.

Com isso deixamos de ter uma tautologia e ganhamos a perpectiva de um paradoxo: só há o acaso porque há a determinação do lance de dados, só há incerteza porque é possível torná-la certa. Aqui o que me vem à mente é a história de Chris Pawlicki, o sujeito que passou três anos estudando o arremesso de dados como um problema da dinâmica dos corpos sólidos e desenvolveu uma técnica que lhe permitia controlar seus movimentos e com isso a forma como caíam os dados. Por mais que seja possível fazê-lo, o esforço para tornar controláveis as condições do lance em vista de um resultado desejado apenas evidencia a extensão da adversidade a ser contornada. Para este particular lance, não poderia ser mais verdade que ele jamais abolirá o acaso.

O lance de dados pode ser comparado à operação de distinguir e indicar da observação. Com ele se efetua um corte, que possibilita estabelecer uma marcação no tempo para distinções ulteriores, mas que ao mesmo tempo não pode ser visto senão como a diferença que marca, não sendo possível, pois, reintroduzi-lo de modo irrestrito em todos os lances subseqüentes. O acaso - a indeterminabilidade - é o que atribui significação ao lance; o corte - o resultado - é o terceiro excluído entre a indeterminabilidade e a determinação.

Tenho comigo muito arraigada a idéia de que os paradoxos são como que janelas por onde podemos nos expor a um alumbramento, buracos pelos quais podemos ver os lampejos da realidade que subjaz às aparências enganosas do que se nos apresenta como "real". Não podemos apreendê-los de forma estática, senão episodicamente, de maneira fragmentária e por aproximação; tampouco podemos resgatar seu sentido integral, senão por reminiscência. Por isso o paralelo com os koans e seu apelo à intuição. Agora eu acho que consigo finalmente ilustrar:

Hekiganroku - Caso 68: Kyozan e "Seu Nome"

Kyozan perguntou a Sansho,
"Qual o seu nome?"
Sansho disse,
"Ejaku. [1]"
Kyozan disse,
"Ejaku -- esse sou eu."
Sansho disse,
"Meu nome é Enen. [2]"

Kyozan deu uma gargalhada alta.

[1] O nome completo de Kyozan é "Kyozan Ejaku".
[2] O nome completo de Sansho é "Sansho Enen".

Aqui eu tenho que parar de qualquer jeito. Um koan, por definição, embora seja definível ou explicável (o mestre espera respostas!), não pode ser definido nem explicado.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Um demônio na madrugada



Mais uma vez: insônia, angústia, medo, solidão. Não sei o que tem havido comigo e sei-o muito bem. Estou como que perdido entre os estilhaços alfanuméricos do calendário, preso nalguma data infinitesimal. Dessa vez, deu-me no corpo tanto quanto na alma. O coração pula, engasga; os membros esquentam e tenho calafrios; um nó me sobe à goela; a cabeça parece não dar conta de seu conteúdo; a vista falha; engulho. Vejo-me devolvido, à força, à minha velha tristeza, e tudo ao meu redor parece abandono. Coloco delicadamente tudo que me é acalanto num lugar seguro, enquanto espero poder reagir. Ainda que eu tivesse uma boa máscara, poderia talvez circular despercebido entre as pessoas.

É muito ruim viver sozinho.

E para que essa postagem não pareça pura auto-comiseração (ou para que o seja logo descaradamente), invoco meu camarada Poe:


Alone


"From childhood's hour I have not been
As others were; I have not seen
As others saw; I could not bring
My passions from a common spring.
From the same source I have not taken
My sorrow; I could not awaken
My heart to joy at the same tone;
And all I loved, I loved alone.
Then- in my childhood, in the dawn
Of a most stormy life- was drawn
From every depth of good and ill
The mystery which binds me still:
From the torrent, or the fountain,
From the red cliff of the mountain,
From the sun that round me rolled
In its autumn tint of gold,
From the lightning in the sky
As it passed me flying by,
From the thunder and the storm,
And the cloud that took the form
(When the rest of Heaven was blue)
Of a demon in my view. "

domingo, 11 de maio de 2008

Desrazão


Dans l'amour comme dans presque toutes les affaires humaines, l'entente cordiale est le résultat d'un malentendu. Ce malentendu, c'est le plaisir. L'homme crie: «Oh ! mon ange !» La femme roucoule: «Maman ! maman !» Et ces deux imbéciles sont persuadés qu'ils pensent de concert. - Le gouffre infranchissable, qui fait l'incommunicabilité, reste infranchi.

Helás!

A passagem é de Baudelaire, em "Mon coeur mis à nu". Ela me soa amargamente cruenta, e na sua quase verdade aparente eu consigo mesmo adivinhar o olhar entediado de falsa resignação de uma alma sensível, porém soberba, que manteve todos os sentidos alertas durante sua longa queda. Afinal de contas, trata-se do mesmo Baudelaire que abraçou a "linguagem do indizível" como sua vida, um pessimista que amava as mulheres, mas que anunciava:

La femme est le contraire du Dandy.
Donc elle doit faire horreur.
La femme a faim et elle veut manger. Soif, et elle veut boire.
Elle est en rut et elle vent être foutue.
Le beau mérite !
La femme est naturelle, c'est-à-dire abominable.
Aussi est-elle toujours vulgaire, c'est-à-dire le contraire du Dandy.

Acho que nem preciso dizer que não sou dandy o bastante para concordar com meu velho amigo, e na verdade muitas vezes quero mesmo crer que é precisamente essa naturalidade que atrai nas mulheres os homens. "Amar as mulheres inteligentes é um prazer de pederastas." Palavras dele.

Mas eu não vou escrever um daqueles textos que querem dar conta dos muitos desencontros entre os sexos - de jeito algum! Eu continuo crendo que a improbabilidade da comunicação se confirma na sua possibilidade.

Assim, tenho comigo que aquela "imbecilidade" é fundamentalmente irrenunciável - não porque os imbecis envolvidos sejam imbecis em si mesmos, nem porque a cordialidade seja, de fato, sempre resultado de um mal-entendido, mas porque seja lá o que for a que se confie o sentido de uma razão, ela não nos guiará sozinha, ou não nos guiará de todo: a razão pode não passar de um ponto mais ou menos fixo desde onde se marca toda a extensão do irracional e do desejo. E isso para o bem ou para o mal. Assim como a serpente da lenda, o "agente universal" do magismo antigo, essa força cega e burra há de nos levar por onde a mão bem treinada lhe puxar as rédeas. Só não se abole a iminência do pinote.
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Não se pode ver que não se pode ver o que não se pode ver. Essa é a condição de possibilidade do nosso olhar. Nossa beleza e nossa miséria.

- Ora, por que essa conversa?

- E eu lá preciso me justificar?

Acontece só que eu acordei no meio da madrugada com todas as minhas obrigações pulando no meu colo. Realmente, não consegui mais dormir de tão ansioso, esmagado nem sei se pelo trabalho que me aguarda, ou mais pela exiguidade das minhas forças e da minha paciência. E fiquei pensando que, ao longo do dia que passou, quis me convencer e quis fazer crer que eu podia me empregar alegremente à dissipação: beber, fumar, gargalhar a esmo. Que piada! O peso da cerveja no meu estômago me incomodava, assim como seu gosto no fundo da minha língua. Fumei um cigarro pela metade. Minha pretendida selvageria não passou de delírio e empáfia...

Olhando retrospectivamente, eu não sei exatamente o que me fez pensar que eu poderia me abandonar impunemente ao ócio e à embriaguez, até porque disso eu já tirei as lições que precisava saber. Mas sei que essa ilusão fez contrastar fortemente o outro lado, que é o que me importa. Agora, como já antes, só me passa pela cabeça a necessidade de ser cuidadoso com as coisas delicadas. E a vida é toda ela tão delicada! É espantoso quanta quebradeira alguns têm que provocar para se dar conta disso... Atenção e silêncio, por mais difíceis que sejam de obter e manter (ou talvez por isso mesmo), são imprescindíveis - ainda que não nos sejam dadas como garantia de nada. A consciência que tenho hoje das coisas que são importantes para a sustentação da minha vida, quer dizer, a convicção de que eu amo o que eu amo, me deixa extremamente sensível a essas questões. Mas para o conhecimento da contingência que se insinua sob nosso convencimento, não há anestesia que sirva - nem eu quero.

E no meio de tanta incerteza, sinto-me quase que compelido a admitir que só há salvação possível pela fé, e que só ela pode aliviar a alma de quem sabe que a desrazão está sempre à espreita.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Integralmente


Esta semana, pela primeira vez, estou cuidando sozinho de minha filha de 4 anos. Minha ex-mulher viajou para Fernando de Noronha, e como minha família toda está no Maranhão e a dela em São Paulo (com exceção da mãe, que mora em BH, mas com quem não se pode contar muito...), claro está que o deleite da digníssima se faz às custas do papaizinho aqui. Antes, porém, que o leitor inadvetido adivinhe em mim uma má vontade que não existe, devo informar que sou um pai presente e participativo, do tipo que troca fralda, dá banho, penteia, veste, corta unha, alimenta, brinca, passeia, leva para a escola e se intera do que acontece por lá, faz oração antes de dormir, coleciona desenhos etc. Isso para não dizer que divido todas as contas, além de gastar uma fortuna todos os meses com as "coisinhas" que ela me pede quando está comigo.

Na verdade, o que gerou meu desconforto inicial com a situação, agora vejo, foi o medo de não poder dividir a responsabilidade pela criança com ninguém - muito mais do que o fato de que tenho uma montanha de coisas para resolver esta mesma semana, incluindo, entre outras coisas, a obrigação de montar um curso de Direito Constitucional Comparado, e a desesperada necessidade de planejar aulas de metodologia da pesquisa científica e didática do ensino superior, que devo ministrar na sexta-feira e no sábado.

Nunca imaginei que pudesse novamente sentir falta da minha ex-mulher, mas é precisamente esse o caso. Não por ela como gente, em si mesma, claro, mas pelo que ela representa na dinâmica da minha vida atual. Foram quase oito anos de casamento, que renderam uma criança linda e com ela todas as implicações que assumem pais amorosos e comprometidos, mas que não me comovem em nada como lembrança afetiva. De qualquer forma, não consigo nem imaginar como seria a minha vida se ela decidisse entrar para a União do Vegetal e mudar para o Acre, deixando a Clarissa por minha conta. Ou melhor: consigo e não gosto nada.

A Renata é uma mulher muito inteligente, experiente, viajada, uma profissional respeitada e competentíssima, que não é linda, mas tem seus encantos, além de ser filha de um senhor milionário, com mais de oitenta anos e um câncer no intestino. Quando eu a conheci, eu vinha de um longo período de hedonismo desenfreado, que se seguiu a um relacionamento de quatro anos, cujo final me deixou bastante depauperado. Estava em grande forma física, ganhando bem, morando sozinho numa casa linda e enorme perto da praia, tinha um bom carro, e vivia cercado de amigos e admiradores diversos. Minhas pretensões artísticas estavam em evidência na época: eu tinha um pequeno estúdio montado dentro de casa com os equipamentos de parceiros, que estavam sempre por lá, compondo e tocando, e o espaço virou uma espécie de reduto da malucada. Com tanta afluência, não havia muito tempo para o tédio em minha vida.

A despeito disso, para mim, na época, ela era a mais óbvia das opções. Eu estava cansado de garotas bonitas e loucas ou burrinhas, assim como das interessantes mas problemáticas ou rodadas demais. Tinha também receio de me tornar excessivamente cínico, bem como uma inveja disfarçada dos meus amigos que tinham namoradas "sérias". Renata, apesar de ser amiga de amigos meus, nunca me tinha sido apresentada, e talvez por isso mesmo não tivesse maiores resistências a um envolvimento - quer dizer, até que tinha, mas por outras razões. Já então ela havia solicitado no serviço sua transferência de volta para BH, e entre o começo do namoro e minha decisão de me desfazer de tudo e vir atrás dela não chegaram a se passar 6 meses.

Eu nunca vou diminuir a importância que ela teve para que minha vida adulta "engrenasse". Ela me ajudou a entender que não adiantava eu ter um grande potencial se não projetasse uma imagem de poder; que era preciso que eu fechasse meu campo de recorrências em um foco e abandonasse meus pendores enciclopédicos; que não havia nada de mal em traficar favores e se valer de influências; que eu tinha que engolir sapos se quisesse comer os outros pratos da refeição; e que dinheiro não traz felicidade, mas garante tanto entretenimento que, no fim, a gente acaba nem percebendo que é triste.

O grande problema é que, nesse processo, eu fui perdendo minha espontaneidade e meu tesão. Eu era um eterno devedor, e tudo que eu fazia ou não prestava, ou era incompleto, ou nunca era mais que apenas suficiente. Entrar no mestrado em Direito da UFMG e receber propostas de emprego uma atrás da outra não passava de minha obrigação. Consertar chuveiro, fixar prateleiras, instalar tomadas e luminárias, desentupir cano, idem. Não que eu não fosse encorajado e aplaudido, mas, em vez de entusiasmo, eu percebia somente "reforço positivo". Todo prazer possível parecia confluir para a satisfação do dever cumprido. Sentia que minha respeitabilidade ia se esvaziando à medida que as críticas iam se tornando mais severas, mais desabridas, sobretudo porque eu trabalhava boa parte do tempo em casa. Sentia culpa por às vezes ser bobo e desatento. Comecei a me ver como um porcalhão bagunceiro. A porta da rua me foi oferecida diversas vezes como serventia da casa.

Bom, tudo isso é para dizer que a separação foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida. Hoje eu consigo respeitar e até ter carinho pela Renata, e sei que a recíproca é verdadeira. E exatamente por eu estar tão feliz é que eu não guardo rancor ou mágoa, nem trago comigo nenhuma cicatriz. Por outro lado, aprendi muito sobre mim mesmo, sobre o tipo de pessoa que sou e sobre o que eu desejo para minha vida - muito! Aprendi, principalmente, a escutar minhas intuições, a escutar o corpo. E descobri um tipo de amor que me tornou muito mais capaz de amar quem para mim for amável. Esses dias, sozinho com a Clarissa, deixaram isso tudo muito claro aos meus olhos.

Tenho certeza de que essa pessoa linda, por quem meu amor já começa despontar, se estiver disposta a me amar também, vai ter um homem excelente, pelo tempo que quiser - não para completá-la ou para ser completado, mas para estar inteiro ao seu lado.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Abissal

Antes que me visitasse o sono naquela noite, meus olhos se encheram de minúsculas larvas e o mar invadiu meus ouvidos. Meus membros estufaram, e eu fui.

(Senhores, pouco me importam vossas pilhérias, delas eu já conheço o vinagre, guardai-nas, guardai-nas. Levai-me ao tribunal, caso julgardes que infrinjo as cláusulas do meu batismo. Podeis mesmo dar à gentalha a lavagem dos meus ossos, depois de descarnar-me – que bela jóia em vosso rosário de lágrimas! Estais em vosso pleno direito, não vos acanheis.)

No vestíbulo, antes do mergulho, a cordialidade camarada da étiquette despediu-se, e a gíria suja de todos os cais selou minha má vontade e me fez seu cúmplice. Soprei para dentro uma palavra ininteligível, numa língua surda, mas nada se moveu. Somente eu conhecia de minha condição de testemunha, e por isso achava poder chamar Deus pelo apelido, vede que loucura. Caminhei meu passo dormente dentro do veludo espesso da noite, sem mão nem bastão. Foi o bastante para que eu soubesse que há uma outra cegueira, mais escura, dentro da primeira e antiga.

Então! Descobri propriedades curativas na comicidade de meus trambolhões: vossa burla, vossa chalaça, não é bem isso o que desfranze o cenho e dissipa a bile? Sejamos honestos! Todos crêem nas estampas dos sonhos, na dignidade das orações, na virtude das abstinências, no rumor invisível das esferas celestes. Certamente há lugar para meu estupor em vossa ciência, por que não haveria? Além do mais, não poderia causar-vos mal nenhum, não sou fraco o bastante – e a prova é este esgar.

Todavia, creio que este convencimento deponha contra mim.

Arrojo-me, vá lá, não tenho mesmo outra saída, já farejo o ar pantanoso no rastro da Erêndira e revejo seus muitos acontecimentos funerários. Meus olhos não se moviam sob aquelas lentas estalagens; rumores de desastres manchavam meus calcanhares de fuligem e de sangue. De longe, seria muito fácil tomar-me por um fantasma desbotado, um fogo fátuo entre as ramagens, e, na verdade, muito pouco de mim restava nessas ocasiões – apenas o bastante para soletrar o idioma das sombras. Recordo-me muito bem daquela espécie de mendicância atenuada em que me aplicava pelas ruas desertas, à meia noite, perdido entre os andrajos encardidos dos muitos vícios de que me cercava. "Estou fraco, ai, por caridade, arranquem-me esta mortalha", era a própria minha contínua mortalha, sem palavras e sem convicção. O ar aqui é apenas para fôlegos inoxidáveis! – reclamava como um cadáver que se entrega à intempérie, ao amor do próprio pus. Creio que a carne é bem mesmo um meio expiatório do espírito fraco, e creio nisso como numa justificativa, uma carta de alforria, única possibilidade de libertação de um negro. Que podem me ensinar os muitos pequenos inconvenientes do corpo, a flatulência, a gota, a sede não saciada – a mim, que estendi minhas vigílias por sobre uma campina abrasada? O mundo possui uma didática, resta descobri-la.

A lição não desempena?
Não te descoalha a gangrena?
Contas a dor como pena?
Medes o mundo em tua trena?

Mundo
Mundo
Mundo
Mundo

Só há visão se há cena
Mesmo quando a luz é plena
Quem na escuridão acena?
Quem te punciona e te drena?

Julga, condena:
São
Não
Tão
Cão
Quão
Hiena

Bebe na fonte, a regalo,
Dessa aguardente que envenena.

sábado, 3 de maio de 2008

Libertas quae sera tamen

Como o demais de tudo da vida, a liberdade não é a mesma pela estrada afora. Para mim também houve quando ela parecesse a mera ausência de dominação, a explosão a esmo, a inconsciência espasmódica da embriaguez, a debaucherie petulante, a vagabundagem cotidiana e sua lassidão consentida, bocejante e sem remorso. Houve igualmente quando o meu ser livre era a ostentação desavergonhada do que a mim se me acrescia - a opulência do corpo, a virilidade rubra da carne, a sonância da voz, a agudeza da mente e a habilidade dos dedos. E houve, por certo, quando esta liberdade avessa a si se impunha pelo açoite, liberdade de se constringir: andar calçado e vestido, atender à higiene, observar a um silêncio obsequioso sobre todo clamor, e, sobretudo, impor a si um brando regime musical.
Agora, entretido em reminiscências, o olhar fino e meio pachorrento estendido sobre as distâncias dos meus horizontes, sinto-me mais uma vez premido por esta condição fugidia sobre a qual tenho equilibrado a minha travessia. E me apraz estar assim - ancho, dilatado, remansoso como nunca, aplicado em minha arte silenciosa, engendrando no escuro do peito uma palavra que fale por si mesma e me redima, uma palavra nunca dita e que jamais se dirá, mas viva, na intenção e no gesto que são um só, de um só coração, uma só alma, um só desejo.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Experimento semi-onírico

Sempre me senti atraído pela idéia de escrever em situações-limite, aquelas em que a razão esmaecida claudica perigosamente à beira do abismo - não necessariamente sob o influxo de quaisquer aditivos, embora também. Penso no conceito de "stream of consciousness" de Joyce, na "escrita automática" de Breton, nos experimentos frenéticos de Kerouac em seu "Book of Dreams", na vidência auto-induzida de Rimbaud, apenas para ficar com os mais conhecidos. Sempre me seduziu a coisa da psicografia, como Chico Xavier mesmo: esse estado quase catatônico em que a mente capitula sob a força de um daemon, que é o próprio eu esvaziado de si. "Eu é um outro", diria aquele mesmo Rimbaud. Aliás, os alemães (sempre eles!) têm uma expressão deliciosa para designar esse momento de euforia criativa sem peias: Mich reitet auf einmal der Teufel! O diabo, de repente, me cavalga. Saravá!
Obviamente, não foram poucas as minhas tentativas de me levar até as bordas desse precipício vertiginoso. Agora mesmo, os olhos pesados de sono, a cabeça túrgida, o corpo ligeiramente febril, empenho-me em sustar a intrusão de meu senso crítico e não voltar os olhos sobre a frase já escrita, em abolir o desejo de "estar no comando", em deixar os dedos simplesmente irem, sem me importar tanto para onde. Mas... que fiasco! Nunca obtive resultados que não fossem estritamente episódicos, nunca consegui empregar meus artifícios de dissipação de forma consistente. Era assim, aquém ou além, e nada disso interessa. No meu caso, a tendência sempre foi de me abismar, de "passar do ponto". No outro dia, a sensação era sempre a de que o meu demônio me havia pregado uma peça - como se o sapato de cristal da Cinderela poética, na correria, não tivesse ficado para trás, mas se partido irremediavelmente, se pulverizado mesmo, e ela fosse condenada a vagar o resto da vida carregando a evidência reluzente e concreta de sua fantasia impossível.
De qualquer forma, não me dou por vencido, e me recuso terminantemente a acreditar que minha escritura não passa de "cerebrally selective craftsmanship". Mas ainda não foi dessa vez.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Who is the third that walks beside you?

Pensei em escrever algo sobre o blinder Fleck, a "outra cegueira, mais escura, dentro da primeira e antiga", oculta sob a luz que torna a luz visível, mas achei isso tudo muito pretenciso e picareta, e acabei ficando com a impressão de que poderia ir longe demais. Ah, nem vem... Talvez eu deixe entrever minhas bufonarias uma outra hora. Por enquanto, apenas uma passagem de Bourroughs, de onde tirei este título:
"Now look, this whole time thing, past image feeding on the present, we knew it had to end some time but remember when you were on the junk yourself sure you knew you had to kick some time but you said: 'Premature. Premature. Give me a little more junk, a little more time.' Time is junk. Junk is time moving at the speed of light."
E tome um belo trago.