sábado, 14 de junho de 2008

Igual e Diferente

Numa outra dessas postagens minhas aí para trás, um amigo aqui de São Luís (estou em Upaon Açu essa semana para um curso que fui convidado a ministrar) comentou que eu estava “igual e diferente”. A declaração paradoxal me chamou a atenção, claro – meu gosto por paradoxos é professado e sabido –, mas também porque me agrada pessoalmente a idéia de ser diferente mas igual.

Chegando aqui, logo me dei conta de que a afirmação do meu amigo tinha autoridade: sendo ele um cara perceptivo, e tendo vivido apenas em São Luís desde sempre, é óbvio que é larga e reiterada sua experiência com essa noção de “igual e diferente” (embora possa ser que, por isso mesmo, ele, e as tantas outras figuras perceptivas que vivem aqui, já não tenham como reconhecer a diferença na igualdade ou vice-versa – afinal, a gente sabe como o nariz se acostuma a odores e deixa de percebê-los).

São Luís é uma ilha-naufrágio, um barco ébrio encalhado junto à costa, cuja equipagem, enlouquecida e assolada por muitos cruzamentos estropiados, mal desconfia da própria insânia. Aqui, a ruína está em nossos calcanhares por toda parte, e o ar marinho rói sem piedade as ferragens das portas, as pinturas das paredes, e o aramado das almas. Tudo é embalado pelo ir e vir hipnótico das marés e sua brutal amplitude, e por isso todo mundo aqui, penso eu, segue a vida assim meio como sonâmbulo.

E falo sério. É espantoso como o maranhense é indolente, como parece que não está nem um pouco se lixando para a desgraça que se avoluma sob suas ventas (parêntesis para um mea culpa: não renego essa minha maranhensidão, não, pelo contrário: estou certo de que foi essa mesma palermice endógena que me impediu de colocar a conta de luz no débito automático, obrigando meu amor* - a quem eu pedi que molhasse minhas plantas na minha ausência – a ter que se desgastar em telefonemas para a Cemig, depois de constatar que minha energia estava cortada). Justificado pela minha condição, posso falar sem piedade.

Por exemplo: anteontem saí andando para a praia, por dentro dos bairros. É uma caminhada de uns vinte minutos, que vai dar direto na descida para a praia do Caolho, logo em frente a um condomínio residencial bastante conhecido aqui. As casas são todas imensas e aparentemente bem cuidadas, típicas das famílias de classe média-alta local – confirma-o a quantidade de pickups Toyota e Nissan que eu vi entrando e saindo das garagens. Mas, por incrível que possa parecer, as ruas de piçarra do bairro são um odioso esgoto a céu aberto, com mato alto cobrindo as calçadas. E isso a menos de 50 metros de uma das mais importantes avenidas da cidade!

Poderia dar muitos outros exemplos do gênero, todos evidência de uma péssima administração municipal, absolutamente incapaz de fazer cumprir os regulamentos urbanos. Mas como todos esses problemas apenas me parecem mais graves hoje, e não de todo novos, fico muito tentado a concluir que isso diz muito mais do maranhense em si – e do ludovicense em particular – do que de uma escolha política malfadada.

Não vou deixar essa visão unilateral das coisas gerar no meu leitor uma idéia errônea sobre minha cidade, mas por enquanto é isso que tenho a dizer. Obviamente vou ainda escrever bastante sobre minha viagem** (viagens são ótimas para estimular observações, porque, de repente, aquilo que não víamos que não víamos aparece), e aí o quadro ficará mais completo.

Tudo isso só para dizer que observar minha cidade com olhos de estrangeiro tem sido excelente para que eu entenda o que é ser “igual e diferente”. Já dizia meu pai: “Quem sai aos seus, não degenera” - e isso vale mesmo para toda uma linhagem de degenerados.


Vicente Fialho - INADMISSÍVEL!



De um lado e de outro, casas grandes de famílias de classe média-alta. Lá na frente, a Av. dos Holandeses e, mais adiante, a praia do Calhau.



Bastante apropriado - um sujão que se reproduz em alta velocidade!

** Esta postagem inicia uma série de outras que deverão vir, sobre minha experiência de ser estrangeiro na própria terra.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Sobre durar e ser efêmero


Aquele texto do Jabor musicado pela Rita Lee, "Amor e Sexo", é bem conhecido, quase lugar comum, devido à imensa popularidade que alcançaram texto e canção. Não vou aqui dar uma de intelectual metido a besta e dizer que a crônica do Arnaldo Jabor não é bacana, ou que sua versão poética não tenha ficado interessante - embora o som da Rita seja mais meloso do que é meu gosto. Colocado em forma de dualidades excludentes entre si e complementares, o tema ganha expressividade e profundeza, apontando ao mesmo tempo para as aporias do amor romântico e os paradoxos do sexo livre e da "indústria da sacanagem". Assumo que gostaria de ter escrito aquela crônica, muito embora duvide que minha palavra, pesada como é, o tivesse permitido.

Para falar sobre o que quero, começo observando que algumas daquelas "forma duais" de amor e sexo parecem apontar no sentido de que o amor aspira à duração, enquanto o sexo é breve. Basta ver: "Amor é propriedade. sexo é posse. Amor é a casa; sexo é invasão de domicílio." " 'O amor, se não for eterno, não era amor' (Nelson Rodrigues)." " O amor quer superar a morte. No sexo, a morte está ali, nas bocas..." "O amor vem de dentro, o sexo vem de fora, o amor vem de nós e demora. O sexo vem dos outros e vai embora." " Amor é o sonho dos solteiros. Sexo, o sonho dos casados. " Mas não estou dizendo que essa seja a mensagem do texto, até porque o intrincado dos diversos dualismos não permite uma solução unívoca; estou apenas anotando que esse velho clichê de que o amor é estável e o sexo se desvanece está presente ali.

Para reforçar o mote, vou repetir um trecho de informação já também bastante circulado:


"Segundo uma pesquisa sobre a natureza do amor e da paixão, feita recentemente nos Estados Unidos, em que foram entrevistadas 5 mil pessoas em 37 culturas, há uma série de evidências de que essa exaltação [da paixão] seja criada por um coquetel de substâncias químicas cerebrais e deflagrada pelo condicionamento cultural. Os pesquisadores observaram que esse tipo de emoção não dura mais que dois anos e meio, quando a pessoa começa a voltar a um estado mental relaxado. Em meados da década de 60 a psicóloga americana Doroty Tennov já havia chegado à conclusão de que a duração média de uma paixão é de 18 meses a três anos. Suspeita-se que seu término também se deva à fisiologia cerebral; o cérebro não suportaria manter eternamente essa excitação."*

Ok, vamos dar o braço a torcer: ninguém vive em eterno estado de graça, até mesmo porque assim o estado perderia a graça. Um olho exposto ao sol sem piscar durante um longo tempo no fim termina cego. Além do mais, a experiência da diferença está na intermitência, no atravessar e reatravessar de uma forma. Se fosse possível viver em eterna excitação passional, a volúpia, esse querer abismar-se, não seria tão interessante quanto é, sendo fugaz: as ardências que consomem o apaixonado logo perderiam a graça, ou se fariam mecânicas, previsíveis, e igualmente se anulariam.

Quer dizer então que o destino do amor é se tornar como uma coluna de granito, com uma ou outra eventual florzinha lhe brotando dos flancos? Já que "o amor é uma espécie de gratidão posteriori pelos prazeres do sexo" e "o amor vem depois, o sexo vem antes", este último está fadado a minguar, enquanto o outro, nobre, rebrilha em sua imortalidade? Quem já se deu conta da fenescência do corpo e sua submissa obediência à gravidade há de concordar, sobretudo se lhe pulsar uma veia romântica.

Eu, de minha parte, não estou bem certo. Por dois motivos.

Primeiro, porque acredito que a velhice não tem autoridade para nos roubar o tesão. E isso simplesmente porque, hoje mais que no passado, é possível envelhecer com saúde - no corpo e na alma. Obviamente, o tesão não é o mesmo ao longo da vida - tenho dificuldades em imaginar grupos de anciãos trotando alegremente pelas ruas à noite, em busca de aventuras, como sendo uma cena comum. Mas nem por isso deixa de ser tesão. Aliás, tanto bom amor quanto bom sexo reclamam higidez.

Segundo, porque tendo a acreditar que o "entendimento do corpo com outro corpo" (penso em Manuel Bandeira - "A Arte de Amar"**), quando verdadeiro e secundado por um sentimento mais profundo de compatibilidade e satisfação espiritual, pode se manter inteiro por prazo indeterminado. Não estou falando do corpo, saco biológico de humores e hormônios, ou pelo menos não apenas dele, mas do Corpo, esse lugar privilegiado da alma, e que a acompanha, na sua intimidade, mesmo quando a autoridade da razão imposta pelo eu o força a ir por um outro rumo. O corpo sabe, e fala, embora também seja preciso saber entendê-lo e escutá-lo.

Não tenho nenhuma intenção de meter meu bedelho em coisas moderninhas do tipo "poliamor", nem mesmo em fenômenos como a proliferação das "monogamias em série". Outro momento, quem sabe, embora tenha deixado pistas sobre minha visão pessoal sobre a questão na postagem anterior. Na verdade (novidade!), eu sei que os modelos de relacionamentos amorosos disponíveis para o freguês são sortidos. Mas o que importa, ao cabo, entre durar e ser efêmero, é a experiência da travessia - esse trânsito entre o carnal e o transcendental que só os amantes autênticos sabem fazer, e fazer, e continuar fazendo.


P.S.: Dylan Thomas, o louco Gigante Branco sobre a Colina das Samambaias, esclarece bastante o assunto, ao falar sobre "inspiração":
"Para mim, o 'impulso' poético ou a 'inspiração' é apenas a súbita, e geralmente física, chegada da energia para a perícia e o senso estrutural do artesão"
Não é menos, nem mais - a despeito daquele "apenas". Sem uma ou sem outra, a poesia murcha.




* Ler matéria sobre o papel da fisiologia hormonal no processo aqui.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Leveza


Reclamaram* comigo que esse blog anda meio pesadão, meio cabeçudo demais. Vá lá, não se deixa de ser quem se é por decreto, e por isso só me resta pedir paciência. Mas há um lado meu que é leve, tão leve que flutua longe - e é por isso mesmo que eu tendo a metê-lo na gaveta.

Assim, instado, resolvi aliviar um pouco e escrever este intermezzo.

Hoje fui almoçar com minha filha num restaurante perto da minha casa. É um lugar legal, com boa comida, bem freqüentado. Sempre vou lá, e talvez por isso mesmo tenda a ficar um pouco inerte para o espetáculo humano do cotidiano - mesmo poucas coisas sendo mais humanas que sentar-se à mesa para comer. Hoje, porém, estava particularmente sensível às presenças à minha volta e não pude evitar de prestar atenção.

E digo que estava sensível porque, por alguma razão, as pessoas me pareciam bonitas, bem dispostas, contentes consigo mesmas, realmente dignas de admiração. Logo ao meu lado havia uma mesa longa, cheia de ponta a ponta, com jovens na faixa dos 20 e outros jovens na faixa dos 40. Todos pareciam muito alegres de estar ali, e isso por si só já tirava toda a trivialidade da situação. Havia um clima de simpatia e gentileza entre aquelas pessoas que me contagiou. Um casal muito bonito - uma moça de lindos olhos verdes e um rapaz que parecia um galã de novela das sete - se afagava discretamente o tempo todo, e conversava alegremente com os outros, embora para mim fosse evidente que a verdadeira conversa estava naqueles dedos entrelaçados.

À minha frente, um outro rapaz, sozinho, comia um prato um tanto sem cor de salada, ele mesmo estando bem colorido, de cáqui, vermelho e verde escuro. Parecia feliz com seu repasto monocromático, mas seus olhos brilharam mesmo quando (e sei porque acompanhei seu olhar) uma dupla de moças muito bonitas passou por trás da minha cadeira e logo à sua frente. Virei a cabeça sobre o ombro direito e ainda tive tempo de ver como as duas eram realmente atraentes - uma delas, uma morena de pele homogênea e um pouco acima do peso, tinha um ar de inteligente, talvez por causa dos óculos. Na volta, o rapaz de novo as acompanhou com interesse, mas sem nenhuma atitude de rapina. Terminou de comer e foi embora tranqüilamente.

Mais adiante, três homens numa mesa conversavam. Um deles, o mais velho, era do tipo branco-avermelhado, com espessas sobrancelhas desbotadas, e ouvia quase sem falar nada, com uma clara satisfação estampada na cara. Os outros dois eram parecidos, e se não eram irmãos eram primos, e se não eram nada, na minha imaginação eram. Estavam com a barba por fazer, o que acentuava o tom másculo de suas vozes. Pareciam se divertir com algo inofensivo, e não foi difícil ver neles dois moleques relembrando alguma malcriação boba, sob as vistas condescendentes do pai.

Depois de passear tanto ao redor de mim, voltei os olhos para a lindeza logo debaixo do meu nariz. O prato que eu fiz para ela estava muito bonito e só com coisas que ela gosta, por isso não fiz esforço para que ela comesse tudo. Dei-lhe a comida na boca com toda paciência do mundo, e ela não derrubou nem cospiu nada. Eu tinha dito antes que a levaria ao shopping, mas como saímos de casa um tanto tarde, acabou que não deu. Mesmo assim, ela não reclamou, sobretudo depois que eu prometi que a levaria ao parque Guanabara ainda essa semana. Quando falei, ela pulou da cadeira, me beijou e me abraçou efusivamente. Uma moça que estava sozinha numa mesa atrás de mim, parou e ficou observando a cena, com um sorriso parado no canto da boca. Senti um orgulho imenso com aquilo.

Apesar do que possa parecer, eu não estava ali como quem contempla uma cena à distância. Eu era parte daquele episódio, e me sentia assim. O discreto casal, as lindas moças, os rapazes com cara de travessura, não estavam "lá fora", e portanto não se punham como objetos de desejo. Foi assim que me dei conta de que era bem provável que todas aquelas percepções fossem apenas um reflexo do que me ia por dentro - essa euforia sóbria, essa eletricidade circular que se acresce em mim a cada dia.
'
Tenho me achado muito interessante esses tempos - atento, alerta, amável, absolutamente afinado com a verdade dos meus sentimentos. Sem querer, sussurro em silêncio, nas entrelinhas de tudo que digo e faço, o segredo do meu coração.



* Quem tiver sido se acuse - ou não!