quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Preto no branco

Você não me vê mesmo ou está só fingindo?



Há algum tempo comprei um livro muito instigante do sociólogo e cientista político Alberto Carlos Almeida, de título "A Cabeça do Brasileiro". Trata-se, em resumo, de uma adaptação e aplicação da metodologia estatística das famosas "surveys" norte-americanas à realidade brasileira. Bem, se o leitor não sabia, fica aqui informado de que os americanos são os campeões das pesquisas de opinião e têm dados estatísticos sobre praticamente qualquer coisa que possa ter relevância para a composição da opinião pública, incluindo muitas coisas que a princípio podem passar por inutilidades. Almeida leva o mérito de ter ajustado ao nosso particular contexto social os parâmetros empregados pela General Social Survey, a maior pesquisa social dos Estados Unidos, realizada a cada dois anos, desde 1972, pela Universidade de Chicago. A PESB – Pesquisa Social Brasileira – foi levada a cabo pelo instituto DataUff, da Universidade Federal Fluminense e financiada pela Fundação Ford (e não, não creio que este fato tenha se refletido como enviesamento político do trabalho), tendo sido ouvidas 2.363 pessoas, em 102 municípios.

Afora a intenção de Almeida (a meu ver, bem sucedida) de confirmar empiricamente a tese de Roberto DaMatta – a problemática distinção entre indivíduo e pessoa, sintetizada no nosso conhecido "você sabe com quem está falando?", em tudo oposto ao "who do you think you are?" do mundo anglofônico –, o livro coloca sobre a mesa um punhado de verdades incômodas que a maioria de nós prefere disfarçar com mitomania, má consciência ou alienação. Mas meu propósito aqui não é dissecar o livro e explorar as contradições e a hipocrisia do brasileiro médio, nem sequer fazer uma resenha, que se podem encontrar várias muito boas por aí; quero apenas deixar registradas algumas de minhas impressões sobre o preconceito dirigido contra pardos e nordestinos, objeto dos capítulos 9 e 10 do livro, e algo que me diz respeito pessoalmente.

Um incômodo que sempre me acompanhou pelo fato de não ser nem branco nem negro é um tipo de sensação de "falta de lugar". Eu estudei a vida inteira numa excelente escola, que naquele tempo dividia com uma única outra a educação da elite local. Bem, quando se diz "elite", implícita vai a idéia de uma maioria branca, ou que como tal se identifica. A princípio - refiro-me aos onze primeiros anos da minha vida e cinco de escola -, o problema de precisar me identificar como branco ou como negro era problema nenhum, porque eu simplesmente não o via: impediam-me a linguagem familiar, a diversificada paleta de cores da parentalha, do branco azedo ao tição lustroso, além da minha habitual falta de desconfiança. Mas aí o chegou o momento em que o cabelo começou a demonstrar de forma inegável a potência de seu geotropismo negativo. (Para os que perderam essa aula de biologia: começou a crescer para cima e virar uma moita, ou como queria um FDP maldoso, amigo meu, "um cupinzeiro".)

E coisas estranhas se seguiram: minha mãe passou a sugerir que eu fizesse um "relaxamento" para "soltar os cachos", e se prontificava a fazê-lo ela mesma; os colegas agora me chamavam de "negão" de modo mais específico, quer dizer, com um tom algo diferente do tratamento genérico a que o termo servia; e eu mesmo passei a me dar conta de que minha cabeleira não flamulava ao vento como a dos outros rapazes, que minha pele reagia mais "intensamente" a um dia de praia, e que as garotas iam ficando reticentes comigo, quase refratárias, ao mesmo tempo em que deixavam evoluir o contato com outros rapazes, os claros e de cabelos lisos. A essa desgraça somava-se o fato de que eu estava sempre entre os melhores da turma e era queridinho dos professores, usava óculos, adorava ler e não era de esportes - em suma, era CDF.

Lembro-me da ocasião em que a ficha caiu. Estávamos alguns rapazes da escola conversando com outros amigos que não estudavam lá quando o assunto recaiu sobre certa moça, que fazia sucesso com a galera. Alguém estava descrevendo a dita moça quando eu atalhei e disse, antes de chegar ao atributo que mais interessava: "... ela é mais ou menos da minha cor e...", mas não consegui terminar a frase: "que da tua cor o quê, rapaz, tu é preto, sai prá lá..." E fiquei sendo, instalado estreito na minha falta de lugar: mas nem tão preto a ponto de ser empurrado para o gueto da minoria negra que as bolsas de estudo permitiam "conviver" com a elite, nem tão branco que pudesse participar irrestritamente dos prazeres de uma aceitação a priori. Isso é coisa que não se enuncia, que não se diz com todos os fonemas, mas que sai nas legendas, em letras miúdas, bem vermelhas ou roxas.

Depois que me mudei definitivamente para o Sudeste, há uns 9 anos, passei também a sentir a desconfiança alheia pelo fato de eu ser nordestino. Bem, é certo que hoje isso não faz muita diferença, virou apenas um dado pitoresco a meu respeito, sobretudo porque a inteligência aguda e a força física impõem respeito. Mas logo que cheguei aqui, percebi que as pessoas se mostravam interessadas e perguntavam curiosamente sobre o lugar de onde venho, só para depois reforçar minha condição de forasteiro dizendo para algum eventual terceiro "ah, Fulano, ele é da terra do Sarney" - no que se emendavam várias outras detestáveis perguntas e afirmações estereotipadas. Bem, caro/a amigo/a, acredite: isso não é a mesma coisa que dizer que o sujeito é paulista, carioca ou gaúcho. Cagada no trânsito ou serviço mal feito é "baianada", termo genérico para nordestino, e isso é sintomático, tanto quanto dizer que o sujeito tem um "pé na cozinha". Pelo menos duas oportunidades de emprego foram inexplicavelmente perdidas depois que, em entrevistas ou treinamentos, eu falava com entusiasmo de minha origem.

Bem, chega, porque a última coisa que quero é que meu texto pareça a lenga-lenga plangente de alguém que se acha vitimado. Minha experiência direta com o preconceito sempre foi bastante diluída, tanto que eu nunca sequer cogitei me tornar um ativista - o que não torna a discriminação vivida menos real e sofrida. Olhando retrospectivamente (tenho usado tanto essa expressão...), percebo que, juntando os aqui e acolás, foram muitos os eventos desse tipo que me ocorreram, embora quase sempre sem maiores repercussões. Não se trata de algo que paralisa ou desviruta a minha vida, mas não deixa de ser um transtorno que de vez em quando incomoda, precisamente por ser um preconceito ambíguo como a situação dos pardos, e por isso mais dissimulado e insidioso.


Arremato com uns trechos do Alberto Carlos Almeida e uma poesia de Langston Hughes:




"[A] avaliação que o brasileiro faz dos pardos pode ser reforçada se forem observados os percentuais para alguns atributos positivos e negativos. São eles os menos honestos, os que mais parecem com um criminoso, os mais malandros (empatados com os pretos) e os segundos mais preguiçosos. Em resumo, sua imagem está associada à desonestidade e ao crime. O pardo personifica o malandro. O historiador Carl Degler diria que essa hostilidade decorre de sua imagem como aquele que gosta de se intrometer onde não é chamado, disputando posições com os brancos, principalmente no mercado de trabalho. Ou seja, "o negro conhece o seu lugar e o mulato (pardo) não... o mulato é que é móvel socialmente, não o negro".
"Os dados revelarão que, apesar de branco, [o indivíduo] não merecerá a mesma avaliação que os outros dois da mesma cor [e que não foram dados como nordestinos]. O que mostra o preconceito contra os nordestinos, mesmo que ele seja branco."


Cross

Langston Hughes, 1926

My old man's a white old man
And my old mother's black.
If ever I cursed my white old man
I take my curses back.

If ever I cursed my black old mother
And wished she were in hell,
I'm sorry for that evil wish
And now I wish her well.

My old man died in a fine big house.
My ma died in a shack.
I wonder where I'm gonna die,
Being neither white nor black?


What you see is not what you get!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Minhas raízes alemãs


Decidi aproveitar essa postagem, que restava à toa aqui entre outras que não tive coragem de terminar, para retomar as atividades desse blog preguiçoso e iniciar o ano como quem segue adiante sabendo de onde vem. Agora, nel mezzo del cammin di nostra vita, e sabidamente endurecido o lombo por peia forte, a noção de recomeço, para mim, se mais grave e visceral, é porque justamente sem ilusão - embora jamais sem sonho.

Eu sou de São Luís do Maranhão, nascido e criado num bairro de periferia chamado Alemanha, que, dizem as crônicas, ganhou esse nome por conta dos padres alemães que controlavam a paróquia local de Nossa Senhora da Glória. A rua em que eu passei toda a infância e a maior parte da adolescência foi durante bastante tempo conhecida pelo nome de uma obscura personalidade, um tal Benedito de Alencar Campos, mas, ainda na primeira metade da década de 80, alguma alma imaginativa, por razões também obscuras, decidiu que Minas Gerais era um nome melhor - e ficou sendo. Depois de tombar em uma ladeira íngreme, e não sem antes despir-se devidamente do asfalto, como convém, a rua Minas Gerais mergulha de cabeça no mangue, para, em sua continuação imaginária por sobre a maré e a lama e os caranguejos e as palafitas, terminar no antigo portinho da Carioca, onde hoje fica uma construção branca e cinzenta com eventuais amarelos e jeitão de fábrica, que acontece de ser o Hospital Sarah Kubitschek.

Os tipos e as histórias do bairro Alemanha estão entranhados em mim, no meu imaginário, nos meus sonhos e pesadelos, e perduram nos interstícios do meu eu construído - em trejeitos, chistes, automatismos e idioletos. Percebo isso com frequência, por evocações claras e fugidias que costumam ocorrer no quase nada de tempo entre o pensado, o dito e o feito. Estão aqui: o carroceiro que me me fez descobrir a compaixão, estalando o chicote sem dó num gobilo novinho enquanto gritava "chiba!"; o bêbado que me mostrou, de uma só lapada, o que era auto-ironia, auto-comiseração, e circunspecção - Mariano, de olhar silencioso enquanto, sóbrio, aguentava os moleques que o aporrinhavam quando chafurdava na manguaça e lastimava sua condição pelas ruas, aos berros; a reputada feiticeira, D. Maria Fungá, que instilou em mim o medo e o fascínio pela macumba, pelo oculto, aparecendo na missa de domingo cedo com sua boca de poucos dentes e uma touça de pano na cabeça, depois de ter passado a noite anterior uivando no quintal; o ladrão de galinhas e maconheiro contumaz Batman, sem camisa e de olhos esbugalhados, que aproveitava a fama de mau adquirida depois de um breve período na penitenciária por mixaria para achacar os desavisados, e que me fez aprender a não ter medo sem precisar ter; a mocinha liberal, sempre com um quase nada de roupas, que atendia pelo singelo apelido de Maria Tanajura, professora de uma geração inteira que, graças a ela, pôde aprender o que é o poder de uma imensa e perfeita bunda de mulata. Isso para não falar nos cornos contumazes, nas marocas clássicas, de janela e alpendre, nos viados caricatos, no sempre sorridente filho da dona do puteiro local, com seus 12 graus de miopia e vários parafusos soltos, na velha louca que dava nomes aos pombos e os alimentava todos os dias com os restos de seu almoço, na anãzinha, filha do eterno candidato a vereador, que desafiava qualquer um a sair na porrada. Tudo gente boa e ordeira.

Esse mundo que já não existe, para mim nunca passou. Ele foi e é o contraponto de uma vida interior que se fez não a despeito de tudo isso, mas por causa disso tudo. É claro que eu só posso dizer isso olhando retrospectivamente; no tempo, minha atitude e minha convicção eram de negação quase completa: eu não pertencia àquele lugar, tinha vergonha, era inteligente e sofisticado demais para aceitar aquela vida mesquinha. Mas aquela vida, sem maquiagem, sem diálogos bem pensados, tosca, pobre, era já a vida inteira, comendo o almoço com colher, na cozinha, ao pé do fogão, soltando belos assopros de guaraná Jesus. Foi por causa dessa vida que eu nunca me rendi ao elitismo besta, e foi por causa dela que a consciência do ridículo, do absurdo, do mágico, do grotesco, da gratuidade da existência, penetraram em mim e nunca saíram.

Lá em baixo, o mangue, onde a molecada alugava canoas e descia um braço do rio Bacanga até chegar ao sítio de uma velha para roubar frutas e, eventualmente, escapar de um tiro de sal.