Mas antes que algum engraçadinho se meta a querer me espinafrar, já adianto que nada mais longe de mim que pretender pagar uma de Paulo Coelho: chuva eu nunca produzi nenhuma, nem a dourada, e ventania mesmo só uma bufa ocasional. E muito embora se afirme que por meio desta ciência o adepto consiga se investir de um tipo de onipotência relativa, tornando-se capaz de agir num nível além da medida comum dos humanos, coisa de que eu não me encontro em posição de duvidar, meu interesse, pelo menos aqui, é outro, mais específico, mas não menos assombroso, a saber, a criação do homem por si mesmo e a plasticidade do real. Percebam que nada há de sobrenatural nisso, até porque o magismo jamais poderia admitir a idéia absurda e supersticiosa de um poder contrário às leis universais: “A magia é a ciência tradicional dos segredos da natureza, que chega a nós pelos magos,” sintetiza Levi em seu Dogma. Aliás, a investigação histórica mostra que na raiz da física e da química de hoje está a velha alquimia e sua metafísica.
Em outras palavras, o conhecimento mágico se propõe não a suspender ou abrir parêntesis nas leis naturais, a operar “milagres”, mas a dotar o homem de meios de se transformar naquilo que os cabalistas chamam microprosopo, ou seja, o criador do pequeno mundo - criador de si mesmo e de uma vida interior imortal, e assim de tudo que o circunda. Diz-nos Levi:
Le mage est véritablement ce que les cabalistes hébreux appellent le microprosope, c’est-a-dire le créateur du petit monde. La première science magique étant la connaissance de soi-même, la première aussi de toutes les œuvres de la science, celle qui renferme toutes les autres et qui est le principe du grand œuvre, c’est la création de soi-même.
Esse curso de idéias, por enviesado modo que seja, me leva a outro mago mestre meu, verbo poderosíssimo, inventor e reinventor de mundos, que foi quem primeiro me deu o mote dessa postagem, com a releitura que fiz outro dia desses da minifábula “Desenredo”, em Tutaméia. Rosa, não sei se sabem, mas são palavras dele, era um místico: “Sou místico, pelo menos acho que sou”, disse certa vez, acrescentando:
Eu não sei o que sou. Posso bem ser cristão de confissão sertanista, mas também pode ser que eu seja taoísta à maneira de Cordisburgo, ou um pagão crente à la Tolstói. No fundo, tudo isto não é importante. Como homem inteligente, às vezes pode-se sentir necessidade de se tornar um beato ou um fundador de religiões. A religião é um assunto poético e a poesia se origina da modificação de realidades lingüísticas.
Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original....
Jó Joaquim não teve dúvidas. Importava-lhe, mais que tudo, "por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos", operar o passado, "plástico e contraditório rascunho", para criar "nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?" Não quis saber - fez, só. De convencimento em riste e livre de acabrunhos, declarou que "todo abismo é navegável a barquinhos de papel", em perfeita inteligência sentida de que "o trágico não vem a conta gotas", mas também de que "haja o absoluto amar - e qualquer causa se irrefuta." Jó Joaquim imaginou, e falou - e fez-se.
Eu acredito no poder das palavras - não como um dia jactou-se Poe, in the mad pride of intellectuality, apenas para cair nas mãos do indizível, mas como a própria linguagem do indizível, como poesia (Goethe: "Poesie ist die Sprache des Unaussprechlichen"). Dela retiro a matéria do meu eu secreto e dela me cubro perante o mundo. E sigo sendo.