domingo, 11 de maio de 2008

Desrazão


Dans l'amour comme dans presque toutes les affaires humaines, l'entente cordiale est le résultat d'un malentendu. Ce malentendu, c'est le plaisir. L'homme crie: «Oh ! mon ange !» La femme roucoule: «Maman ! maman !» Et ces deux imbéciles sont persuadés qu'ils pensent de concert. - Le gouffre infranchissable, qui fait l'incommunicabilité, reste infranchi.

Helás!

A passagem é de Baudelaire, em "Mon coeur mis à nu". Ela me soa amargamente cruenta, e na sua quase verdade aparente eu consigo mesmo adivinhar o olhar entediado de falsa resignação de uma alma sensível, porém soberba, que manteve todos os sentidos alertas durante sua longa queda. Afinal de contas, trata-se do mesmo Baudelaire que abraçou a "linguagem do indizível" como sua vida, um pessimista que amava as mulheres, mas que anunciava:

La femme est le contraire du Dandy.
Donc elle doit faire horreur.
La femme a faim et elle veut manger. Soif, et elle veut boire.
Elle est en rut et elle vent être foutue.
Le beau mérite !
La femme est naturelle, c'est-à-dire abominable.
Aussi est-elle toujours vulgaire, c'est-à-dire le contraire du Dandy.

Acho que nem preciso dizer que não sou dandy o bastante para concordar com meu velho amigo, e na verdade muitas vezes quero mesmo crer que é precisamente essa naturalidade que atrai nas mulheres os homens. "Amar as mulheres inteligentes é um prazer de pederastas." Palavras dele.

Mas eu não vou escrever um daqueles textos que querem dar conta dos muitos desencontros entre os sexos - de jeito algum! Eu continuo crendo que a improbabilidade da comunicação se confirma na sua possibilidade.

Assim, tenho comigo que aquela "imbecilidade" é fundamentalmente irrenunciável - não porque os imbecis envolvidos sejam imbecis em si mesmos, nem porque a cordialidade seja, de fato, sempre resultado de um mal-entendido, mas porque seja lá o que for a que se confie o sentido de uma razão, ela não nos guiará sozinha, ou não nos guiará de todo: a razão pode não passar de um ponto mais ou menos fixo desde onde se marca toda a extensão do irracional e do desejo. E isso para o bem ou para o mal. Assim como a serpente da lenda, o "agente universal" do magismo antigo, essa força cega e burra há de nos levar por onde a mão bem treinada lhe puxar as rédeas. Só não se abole a iminência do pinote.
'
Não se pode ver que não se pode ver o que não se pode ver. Essa é a condição de possibilidade do nosso olhar. Nossa beleza e nossa miséria.

- Ora, por que essa conversa?

- E eu lá preciso me justificar?

Acontece só que eu acordei no meio da madrugada com todas as minhas obrigações pulando no meu colo. Realmente, não consegui mais dormir de tão ansioso, esmagado nem sei se pelo trabalho que me aguarda, ou mais pela exiguidade das minhas forças e da minha paciência. E fiquei pensando que, ao longo do dia que passou, quis me convencer e quis fazer crer que eu podia me empregar alegremente à dissipação: beber, fumar, gargalhar a esmo. Que piada! O peso da cerveja no meu estômago me incomodava, assim como seu gosto no fundo da minha língua. Fumei um cigarro pela metade. Minha pretendida selvageria não passou de delírio e empáfia...

Olhando retrospectivamente, eu não sei exatamente o que me fez pensar que eu poderia me abandonar impunemente ao ócio e à embriaguez, até porque disso eu já tirei as lições que precisava saber. Mas sei que essa ilusão fez contrastar fortemente o outro lado, que é o que me importa. Agora, como já antes, só me passa pela cabeça a necessidade de ser cuidadoso com as coisas delicadas. E a vida é toda ela tão delicada! É espantoso quanta quebradeira alguns têm que provocar para se dar conta disso... Atenção e silêncio, por mais difíceis que sejam de obter e manter (ou talvez por isso mesmo), são imprescindíveis - ainda que não nos sejam dadas como garantia de nada. A consciência que tenho hoje das coisas que são importantes para a sustentação da minha vida, quer dizer, a convicção de que eu amo o que eu amo, me deixa extremamente sensível a essas questões. Mas para o conhecimento da contingência que se insinua sob nosso convencimento, não há anestesia que sirva - nem eu quero.

E no meio de tanta incerteza, sinto-me quase que compelido a admitir que só há salvação possível pela fé, e que só ela pode aliviar a alma de quem sabe que a desrazão está sempre à espreita.