sexta-feira, 16 de maio de 2008

Un coup de dés e o koan de Mallarmé





"Um lance de dados jamais abolirá o acaso." É esse o mote principal do grande poema constelar de Mallarmé, matriz de toda poesia de vanguarda, móbile musicado de palavras reluzentes que seduziu e inspirou gerações de poetas-engenheiros, de Cummings a Chacal, de Valéry a Leminski, de Sousândrade e Maranhão Sobrinho aos irmãos Campos e Décio Pignatari. E apesar do complexo e fascinante bordado de formas e sons do célebre poema, a despeito de toda sua realização formal e conceitual, sempre o que me prendeu em seu vórtice foi o sentido enigmático dessa frase-guia, esse tipo de contra-senso mitigado que hipnotiza por não nos deixar imediatamente saber se se trata, de fato, de um mero mistério aparente, ou, ao contrário, se seu efeito ilusório não acaba mesmo nos dizendo algo sobre como funcionam nossos sentidos e como se dá nossa experiência deste mundo.

Como bom luhmmanniano que me considero, a frase não poderia deixar de me evocar a epistemologia da diferença, a racionalidade sistêmica autoreferencial e autopoiética, as leis da forma, a matemática fractal, as teorias da imprevisão e do caos, em suma, as múltiplas vertentes disciplinares reflexivas que incluem as dimensões da contingência, da arbitrariedade e do paradoxo no objeto que constróem ou transcriam, e portanto em si mesmas. E como bom curioso por assuntos de espiritualidade e quejandos, não poderia também deixar de lembrar de alguns koans da tradição zen. Isso tudo, por outro lado, terminava me remetendo à questão do terceiro excluído - e não o penso aqui estritamente no sentido lógico tradicional do tertium non datur, mas naquele que ele assume para o conceito de "observação" da moderna teoria dos sistemas. Deixem-me ver se consigo me fazer menos obscuro.

Poderíamos perguntar: que é um lance de dados se não o próprio acaso em ação? As randômicas combinações de seus possíveis e atuais desenlaces já não são a própria confirmação do acaso? Em outros termos: como jamais poderia algo (um lance de dados) excluir diretamente seu pressuposto (o acaso) sem se aniquilar junto? Ora, o problema aqui, então, nem seria tanto de contradição, pois não se pretende exatamente que algo seja e não seja, mas antes de tautologia - um lance de dados jamais abolirá o acaso porque, sendo o acaso nele tornado concreto, nunca poderá deixar de ser o que é enquanto for o que é. Com isso, desfeita a aura do vaticínio e sua grandiloqüência, sobraria tão somente a circularidade estéril de um silogismo vicioso. Mas a inquietação persiste: o que haveria num lance de dados de tão ameaçador que se fizesse preciso (re)afirmar a soberania da aleatoriedade diante de tal força?

Talvez o caso mereça uma segunda olhada: afinal, ainda é preciso pelo menos pagar um tributo à imaginação do autor, assim como à dúvida metódica.

E é mesmo bem provável que o erro esteja em identificar o lance de dados ao acaso em si - erro semelhante ao que se comete quando, pensando-se em decisões, se dão por coincidentes aquilo que se documenta na alternativa escolhida e o ato de decidir em si. Na verdade, o lance de dados não constitui a pura potencialidade aberta das oscilações probabilísticas, mas sim o preciso momento em que estas se fecham, rápida e inexoravelmente, no fato que se atualiza. Em outras palavras, o lance de dados é a violência/força (o Gewalt de Walter Benjamin) que interrompe a indecidibilidade concreta do acaso, e que, por assim dizer, dá-lhe forma. O lance de dados é o limite, o ponto de travessia; ele demarca a passagem de um estado de coisas a outro, opera uma diferença de complexidades, de opaca a transparente.

Com isso deixamos de ter uma tautologia e ganhamos a perpectiva de um paradoxo: só há o acaso porque há a determinação do lance de dados, só há incerteza porque é possível torná-la certa. Aqui o que me vem à mente é a história de Chris Pawlicki, o sujeito que passou três anos estudando o arremesso de dados como um problema da dinâmica dos corpos sólidos e desenvolveu uma técnica que lhe permitia controlar seus movimentos e com isso a forma como caíam os dados. Por mais que seja possível fazê-lo, o esforço para tornar controláveis as condições do lance em vista de um resultado desejado apenas evidencia a extensão da adversidade a ser contornada. Para este particular lance, não poderia ser mais verdade que ele jamais abolirá o acaso.

O lance de dados pode ser comparado à operação de distinguir e indicar da observação. Com ele se efetua um corte, que possibilita estabelecer uma marcação no tempo para distinções ulteriores, mas que ao mesmo tempo não pode ser visto senão como a diferença que marca, não sendo possível, pois, reintroduzi-lo de modo irrestrito em todos os lances subseqüentes. O acaso - a indeterminabilidade - é o que atribui significação ao lance; o corte - o resultado - é o terceiro excluído entre a indeterminabilidade e a determinação.

Tenho comigo muito arraigada a idéia de que os paradoxos são como que janelas por onde podemos nos expor a um alumbramento, buracos pelos quais podemos ver os lampejos da realidade que subjaz às aparências enganosas do que se nos apresenta como "real". Não podemos apreendê-los de forma estática, senão episodicamente, de maneira fragmentária e por aproximação; tampouco podemos resgatar seu sentido integral, senão por reminiscência. Por isso o paralelo com os koans e seu apelo à intuição. Agora eu acho que consigo finalmente ilustrar:

Hekiganroku - Caso 68: Kyozan e "Seu Nome"

Kyozan perguntou a Sansho,
"Qual o seu nome?"
Sansho disse,
"Ejaku. [1]"
Kyozan disse,
"Ejaku -- esse sou eu."
Sansho disse,
"Meu nome é Enen. [2]"

Kyozan deu uma gargalhada alta.

[1] O nome completo de Kyozan é "Kyozan Ejaku".
[2] O nome completo de Sansho é "Sansho Enen".

Aqui eu tenho que parar de qualquer jeito. Um koan, por definição, embora seja definível ou explicável (o mestre espera respostas!), não pode ser definido nem explicado.