quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Jesus, que diabo é isso?

Tem umas coisas na vida da gente que fazem pensar o que é bom e o que é mau, o que salva e o que mata. Um remédio amargo é bom, mas um delírio, por mais doce que seja, é sempre um delírio. É óbvio, mas o povo continua pensando que berimbau é gaita. Resultado: muita gente mordendo o arame.

Quando Jesus estava terminando de se preparar para sua missão, ele foi passar uma temporada com o diabo, só os dois, no meio do deserto. Pensem nisso: ele foi ter uma conferência privada com o capeta! Que nesse angu tinha caroço, é lógico que tinha; mas, de que tipo? Vou arriscar responder – à la diable, como de costume.

Que o diabo não é tão feio quanto lhe pintam, todo mundo sabe. O que a maioria não sabe é o quanto o diabo é bonito. O grande mentiroso, o grande sedutor, não pode se apresentar por aí com cecê de enxofre, pele de náufrago holandês nas Antilhas e portando um par de cornos retorcidos. Daí ele caprichar no visual, usar um bom perfume, falar macio palavras bonitas e estar sempre pronto a romper em entusiasmo e generosidade. Não à toa a lenda reza que ele é um excelente e vigoroso amante.

Mas o diabo é velho, e por ter arrastado muito a barriga pela terra toda, sabe na pele de coisas que até Deus duvida – porque Ele fez a criação, mas foi o que-diga que saiu para explorar. O diabo tem mapas, e os mapas, como se sabe, não são o território. Minha teoria, então, é que Jesus foi lá não para pegar com ele um mapa qualquer, mas para aprender a arte ancestral da cartografia.

Prestem atenção, que essa é a diferença entre a pílula azul e a pílula vermelha: não adianta ser dono do infinito e da eternidade se você não souber onde as coisas terminam e onde elas começam. Fazer mapas é traçar essas linhas, e traçá-las de modo não arbitrário, ou seja, contra a tentação suprema de quem tem a onipotência.

O que eu estou dizendo, em resumo, é que Jesus foi ao deserto para aprender a se controlar, e só com isso ele pôde sair por aí fazendo ungüento de cuspe para cegueira e outras coisas malucas. E esse negócio, pessoal, é sério, muito sério, por duas coisas, principalmente.

Uma, é que não adianta ficar lidando com os “próprios demônios” – e Jesus, como homem, estava sujeito a eles. Essa é a ralé exibida dos poltergeists da vida, dos desvarios, dos ataques histéricos, e deles não se aprende nada, ou nada que valha muito. Portanto, não adianta “abraçar o seu desejo”, acolher o seu doce demônio, por mais natural e saudável que isso pareça: é preciso ter um cara-a-cara com o coisa ruim em pessoa. E sabe o quê? O diabo, sozinho, não existe, é um nada – pergunte a Riobaldo. O diabo é um vazio, e não um buraco, que buraco são as bordas. Por isso o lugar dele é o deserto.

A outra coisa é que esse encontro quase sempre é mortal. Ninguém que vá à presença do demo pensando que vai ter dois dedinhos de prosa, virar as costas e picar a mula. O diabo quer a nossa alma, que é tão fácil de agarrar que ele pouco se dá ao trabalho de ir apanhar ele mesmo, preferindo mandar seus secretários. Jesus, que era o cara, ficou quarenta dias tentando cortar o assunto, até ser forçado a ser grosseiro, recusar o cafezinho com broa do anfitrião e dizer que tinha outro compromisso.

Já termino, proporcionalmente com duas notícias. A ruim é que não adianta ficar no templo (no consultório, dentro de um livro, no playground do condomínio, em mil comunidades virtuais, onde as coisas são não só confortáveis, mas controláveis) ruminando em si o de si. O diabo não vem até você: é preciso que você vá até ele – invertendo a lógica da supremacia – e se resgate.

A boa é que você não é obrigado a fazer isso.