quinta-feira, 15 de abril de 2010

Quod superius, quod inferius



Quem me conhece minimamente sabe do meu interesse por assuntos ligados à chamada “filosofia natural”, não propriamente o antigo ramo filosófico de investigação dos fenômenos da natureza que degenerou na ciência moderna, senão o seu sentido medieval e renascentista, derivativo, metonímico: filosofia natural, denominação que se costumava dar ao conhecimento cerimonial dos antigos, à ciência régia, a arte sacerdotal oculta de domínio do grande Arcano – expressão com a qual se podia convenientemente descrever um circunlóquio sobre a idéia profana de magismo. Cornelius Agrippa, Paracelso, Ramon Lull, Francis Barret, Tritemo, Guillaume Postel, Swedenborg, e, sobretudo, o abade Alphonse Louis Constant, ou Eliphas Levi Zahed em sua cognominação cabalística, foram, entre outros, meus instrutores de filosofia natural, de quem adquiri um conhecimento que continua sendo muito importante em minha vida.

Mas antes que algum engraçadinho se meta a querer me espinafrar, já adianto que nada mais longe de mim que pretender pagar uma de Paulo Coelho: chuva eu nunca produzi nenhuma, nem a dourada, e ventania mesmo só uma bufa ocasional. E muito embora se afirme que por meio desta ciência o adepto consiga se investir de um tipo de onipotência relativa, tornando-se capaz de agir num nível além da medida comum dos humanos, coisa de que eu não me encontro em posição de duvidar, meu interesse, pelo menos aqui, é outro, mais específico, mas não menos assombroso, a saber, a criação do homem por si mesmo e a plasticidade do real. Percebam que nada há de sobrenatural nisso, até porque o magismo jamais poderia admitir a idéia absurda e supersticiosa de um poder contrário às leis universais: “A magia é a ciência tradicional dos segredos da natureza, que chega a nós pelos magos,” sintetiza Levi em seu Dogma. Aliás, a investigação histórica mostra que na raiz da física e da química de hoje está a velha alquimia e sua metafísica.

Em outras palavras, o conhecimento mágico se propõe não a suspender ou abrir parêntesis nas leis naturais, a operar “milagres”, mas a dotar o homem de meios de se transformar naquilo que os cabalistas chamam microprosopo, ou seja, o criador do pequeno mundo - criador de si mesmo e de uma vida interior imortal, e assim de tudo que o circunda. Diz-nos Levi:


Le mage est véritablement ce que les cabalistes hébreux appellent le microprosope, c’est-a-dire le créateur du petit monde. La première science magique étant la connaissance de soi-même, la première aussi de toutes les œuvres de la science, celle qui renferme toutes les autres et qui est le principe du grand œuvre, c’est la création de soi-même.



Ora, logo na primeira das iniciações do Dogma, Levi nos declara que o instrumento de realização da grande obra é a palavra, o verbo. Invertendo o cogito cartesiano, ele expõe a base primitiva de sua filosofia experimental: "Eu sou, logo o ser existe". Assim, ao afirmar ego sum qui sum, Deus se revela no homem, e o homem se revela no mundo. O verbo, a palavra verdadeira, para o homem, é a manifestação uníssona de seu ser, de sua inteligência e de sua vontade. E a inteligência e a vontade, por sua vez, têm como ferramenta auxiliar a imaginação, o olho da alma, meio onde se desenham e conservam as formas. A palavra, apoiada na imaginação, é o que transforma o mundo.

Muito bem.

Esse curso de idéias, por enviesado modo que seja, me leva a outro mago mestre meu, verbo poderosíssimo, inventor e reinventor de mundos, que foi quem primeiro me deu o mote dessa postagem, com a releitura que fiz outro dia desses da minifábula “Desenredo”, em Tutaméia. Rosa, não sei se sabem, mas são palavras dele, era um místico: “Sou místico, pelo menos acho que sou”, disse certa vez, acrescentando:


Eu não sei o que sou. Posso bem ser cristão de confissão sertanista, mas também pode ser que eu seja taoísta à maneira de Cordisburgo, ou um pagão crente à la Tolstói. No fundo, tudo isto não é importante. Como homem inteligente, às vezes pode-se sentir necessidade de se tornar um beato ou um fundador de religiões. A religião é um assunto poético e a poesia se origina da modificação de realidades lingüísticas.

Sim, poiesis, o ato de criar – para Deus e para o homem, pela palavra. E não a palavra grega do logos, cálculo, pensamento, mas o davar hebraico, palavra-coisa, palavra-ato, falar-fazer. Por ela o homem é muito mais que mero súdito de Deus, fazendo-se demiurgo junto Dele e compartilhando da responsabilidade por aperfeiçoar Sua obra, num vir-a-ser que só é possível porque a contrapartida da vontade divina é o livre-arbítrio humano. Este falar-fazer é a aliança de parceria entre Deus e os homens, que começa com Adão, a quem foi reconhecido o direito de nomear o mundo, e se consolida com Noé, que salva para Deus a criação e com isso legitima sua participação na empreitada. O homem é chamado a agir diante da incompletude e da falibilidade, e Rosa também sabia disso:

Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original....


Mas, e se o passado estiver errado?


Mude-se o passado, pois! Quanta incredulidade...


Jó Joaquim não teve dúvidas. Importava-lhe, mais que tudo, "por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos", operar o passado, "plástico e contraditório rascunho", para criar "nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?" Não quis saber - fez, só. De convencimento em riste e livre de acabrunhos, declarou que "todo abismo é navegável a barquinhos de papel", em perfeita inteligência sentida de que "o trágico não vem a conta gotas", mas também de que "haja o absoluto amar - e qualquer causa se irrefuta." Jó Joaquim imaginou, e falou - e fez-se.

Bem, não vou lhes frustrar a leitura do conto - se não para entender melhor o que eu quis dizer, ao menos pela curiosidade e o prazer de ler uma obra primorosa.

Eu acredito no poder das palavras - não como um dia jactou-se Poe, in the mad pride of intellectuality, apenas para cair nas mãos do indizível, mas como a própria linguagem do indizível, como poesia (Goethe: "Poesie ist die Sprache des Unaussprechlichen"). Dela retiro a matéria do meu eu secreto e dela me cubro perante o mundo. E sigo sendo.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Preto no branco

Você não me vê mesmo ou está só fingindo?



Há algum tempo comprei um livro muito instigante do sociólogo e cientista político Alberto Carlos Almeida, de título "A Cabeça do Brasileiro". Trata-se, em resumo, de uma adaptação e aplicação da metodologia estatística das famosas "surveys" norte-americanas à realidade brasileira. Bem, se o leitor não sabia, fica aqui informado de que os americanos são os campeões das pesquisas de opinião e têm dados estatísticos sobre praticamente qualquer coisa que possa ter relevância para a composição da opinião pública, incluindo muitas coisas que a princípio podem passar por inutilidades. Almeida leva o mérito de ter ajustado ao nosso particular contexto social os parâmetros empregados pela General Social Survey, a maior pesquisa social dos Estados Unidos, realizada a cada dois anos, desde 1972, pela Universidade de Chicago. A PESB – Pesquisa Social Brasileira – foi levada a cabo pelo instituto DataUff, da Universidade Federal Fluminense e financiada pela Fundação Ford (e não, não creio que este fato tenha se refletido como enviesamento político do trabalho), tendo sido ouvidas 2.363 pessoas, em 102 municípios.

Afora a intenção de Almeida (a meu ver, bem sucedida) de confirmar empiricamente a tese de Roberto DaMatta – a problemática distinção entre indivíduo e pessoa, sintetizada no nosso conhecido "você sabe com quem está falando?", em tudo oposto ao "who do you think you are?" do mundo anglofônico –, o livro coloca sobre a mesa um punhado de verdades incômodas que a maioria de nós prefere disfarçar com mitomania, má consciência ou alienação. Mas meu propósito aqui não é dissecar o livro e explorar as contradições e a hipocrisia do brasileiro médio, nem sequer fazer uma resenha, que se podem encontrar várias muito boas por aí; quero apenas deixar registradas algumas de minhas impressões sobre o preconceito dirigido contra pardos e nordestinos, objeto dos capítulos 9 e 10 do livro, e algo que me diz respeito pessoalmente.

Um incômodo que sempre me acompanhou pelo fato de não ser nem branco nem negro é um tipo de sensação de "falta de lugar". Eu estudei a vida inteira numa excelente escola, que naquele tempo dividia com uma única outra a educação da elite local. Bem, quando se diz "elite", implícita vai a idéia de uma maioria branca, ou que como tal se identifica. A princípio - refiro-me aos onze primeiros anos da minha vida e cinco de escola -, o problema de precisar me identificar como branco ou como negro era problema nenhum, porque eu simplesmente não o via: impediam-me a linguagem familiar, a diversificada paleta de cores da parentalha, do branco azedo ao tição lustroso, além da minha habitual falta de desconfiança. Mas aí o chegou o momento em que o cabelo começou a demonstrar de forma inegável a potência de seu geotropismo negativo. (Para os que perderam essa aula de biologia: começou a crescer para cima e virar uma moita, ou como queria um FDP maldoso, amigo meu, "um cupinzeiro".)

E coisas estranhas se seguiram: minha mãe passou a sugerir que eu fizesse um "relaxamento" para "soltar os cachos", e se prontificava a fazê-lo ela mesma; os colegas agora me chamavam de "negão" de modo mais específico, quer dizer, com um tom algo diferente do tratamento genérico a que o termo servia; e eu mesmo passei a me dar conta de que minha cabeleira não flamulava ao vento como a dos outros rapazes, que minha pele reagia mais "intensamente" a um dia de praia, e que as garotas iam ficando reticentes comigo, quase refratárias, ao mesmo tempo em que deixavam evoluir o contato com outros rapazes, os claros e de cabelos lisos. A essa desgraça somava-se o fato de que eu estava sempre entre os melhores da turma e era queridinho dos professores, usava óculos, adorava ler e não era de esportes - em suma, era CDF.

Lembro-me da ocasião em que a ficha caiu. Estávamos alguns rapazes da escola conversando com outros amigos que não estudavam lá quando o assunto recaiu sobre certa moça, que fazia sucesso com a galera. Alguém estava descrevendo a dita moça quando eu atalhei e disse, antes de chegar ao atributo que mais interessava: "... ela é mais ou menos da minha cor e...", mas não consegui terminar a frase: "que da tua cor o quê, rapaz, tu é preto, sai prá lá..." E fiquei sendo, instalado estreito na minha falta de lugar: mas nem tão preto a ponto de ser empurrado para o gueto da minoria negra que as bolsas de estudo permitiam "conviver" com a elite, nem tão branco que pudesse participar irrestritamente dos prazeres de uma aceitação a priori. Isso é coisa que não se enuncia, que não se diz com todos os fonemas, mas que sai nas legendas, em letras miúdas, bem vermelhas ou roxas.

Depois que me mudei definitivamente para o Sudeste, há uns 9 anos, passei também a sentir a desconfiança alheia pelo fato de eu ser nordestino. Bem, é certo que hoje isso não faz muita diferença, virou apenas um dado pitoresco a meu respeito, sobretudo porque a inteligência aguda e a força física impõem respeito. Mas logo que cheguei aqui, percebi que as pessoas se mostravam interessadas e perguntavam curiosamente sobre o lugar de onde venho, só para depois reforçar minha condição de forasteiro dizendo para algum eventual terceiro "ah, Fulano, ele é da terra do Sarney" - no que se emendavam várias outras detestáveis perguntas e afirmações estereotipadas. Bem, caro/a amigo/a, acredite: isso não é a mesma coisa que dizer que o sujeito é paulista, carioca ou gaúcho. Cagada no trânsito ou serviço mal feito é "baianada", termo genérico para nordestino, e isso é sintomático, tanto quanto dizer que o sujeito tem um "pé na cozinha". Pelo menos duas oportunidades de emprego foram inexplicavelmente perdidas depois que, em entrevistas ou treinamentos, eu falava com entusiasmo de minha origem.

Bem, chega, porque a última coisa que quero é que meu texto pareça a lenga-lenga plangente de alguém que se acha vitimado. Minha experiência direta com o preconceito sempre foi bastante diluída, tanto que eu nunca sequer cogitei me tornar um ativista - o que não torna a discriminação vivida menos real e sofrida. Olhando retrospectivamente (tenho usado tanto essa expressão...), percebo que, juntando os aqui e acolás, foram muitos os eventos desse tipo que me ocorreram, embora quase sempre sem maiores repercussões. Não se trata de algo que paralisa ou desviruta a minha vida, mas não deixa de ser um transtorno que de vez em quando incomoda, precisamente por ser um preconceito ambíguo como a situação dos pardos, e por isso mais dissimulado e insidioso.


Arremato com uns trechos do Alberto Carlos Almeida e uma poesia de Langston Hughes:




"[A] avaliação que o brasileiro faz dos pardos pode ser reforçada se forem observados os percentuais para alguns atributos positivos e negativos. São eles os menos honestos, os que mais parecem com um criminoso, os mais malandros (empatados com os pretos) e os segundos mais preguiçosos. Em resumo, sua imagem está associada à desonestidade e ao crime. O pardo personifica o malandro. O historiador Carl Degler diria que essa hostilidade decorre de sua imagem como aquele que gosta de se intrometer onde não é chamado, disputando posições com os brancos, principalmente no mercado de trabalho. Ou seja, "o negro conhece o seu lugar e o mulato (pardo) não... o mulato é que é móvel socialmente, não o negro".
"Os dados revelarão que, apesar de branco, [o indivíduo] não merecerá a mesma avaliação que os outros dois da mesma cor [e que não foram dados como nordestinos]. O que mostra o preconceito contra os nordestinos, mesmo que ele seja branco."


Cross

Langston Hughes, 1926

My old man's a white old man
And my old mother's black.
If ever I cursed my white old man
I take my curses back.

If ever I cursed my black old mother
And wished she were in hell,
I'm sorry for that evil wish
And now I wish her well.

My old man died in a fine big house.
My ma died in a shack.
I wonder where I'm gonna die,
Being neither white nor black?


What you see is not what you get!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Minhas raízes alemãs


Decidi aproveitar essa postagem, que restava à toa aqui entre outras que não tive coragem de terminar, para retomar as atividades desse blog preguiçoso e iniciar o ano como quem segue adiante sabendo de onde vem. Agora, nel mezzo del cammin di nostra vita, e sabidamente endurecido o lombo por peia forte, a noção de recomeço, para mim, se mais grave e visceral, é porque justamente sem ilusão - embora jamais sem sonho.

Eu sou de São Luís do Maranhão, nascido e criado num bairro de periferia chamado Alemanha, que, dizem as crônicas, ganhou esse nome por conta dos padres alemães que controlavam a paróquia local de Nossa Senhora da Glória. A rua em que eu passei toda a infância e a maior parte da adolescência foi durante bastante tempo conhecida pelo nome de uma obscura personalidade, um tal Benedito de Alencar Campos, mas, ainda na primeira metade da década de 80, alguma alma imaginativa, por razões também obscuras, decidiu que Minas Gerais era um nome melhor - e ficou sendo. Depois de tombar em uma ladeira íngreme, e não sem antes despir-se devidamente do asfalto, como convém, a rua Minas Gerais mergulha de cabeça no mangue, para, em sua continuação imaginária por sobre a maré e a lama e os caranguejos e as palafitas, terminar no antigo portinho da Carioca, onde hoje fica uma construção branca e cinzenta com eventuais amarelos e jeitão de fábrica, que acontece de ser o Hospital Sarah Kubitschek.

Os tipos e as histórias do bairro Alemanha estão entranhados em mim, no meu imaginário, nos meus sonhos e pesadelos, e perduram nos interstícios do meu eu construído - em trejeitos, chistes, automatismos e idioletos. Percebo isso com frequência, por evocações claras e fugidias que costumam ocorrer no quase nada de tempo entre o pensado, o dito e o feito. Estão aqui: o carroceiro que me me fez descobrir a compaixão, estalando o chicote sem dó num gobilo novinho enquanto gritava "chiba!"; o bêbado que me mostrou, de uma só lapada, o que era auto-ironia, auto-comiseração, e circunspecção - Mariano, de olhar silencioso enquanto, sóbrio, aguentava os moleques que o aporrinhavam quando chafurdava na manguaça e lastimava sua condição pelas ruas, aos berros; a reputada feiticeira, D. Maria Fungá, que instilou em mim o medo e o fascínio pela macumba, pelo oculto, aparecendo na missa de domingo cedo com sua boca de poucos dentes e uma touça de pano na cabeça, depois de ter passado a noite anterior uivando no quintal; o ladrão de galinhas e maconheiro contumaz Batman, sem camisa e de olhos esbugalhados, que aproveitava a fama de mau adquirida depois de um breve período na penitenciária por mixaria para achacar os desavisados, e que me fez aprender a não ter medo sem precisar ter; a mocinha liberal, sempre com um quase nada de roupas, que atendia pelo singelo apelido de Maria Tanajura, professora de uma geração inteira que, graças a ela, pôde aprender o que é o poder de uma imensa e perfeita bunda de mulata. Isso para não falar nos cornos contumazes, nas marocas clássicas, de janela e alpendre, nos viados caricatos, no sempre sorridente filho da dona do puteiro local, com seus 12 graus de miopia e vários parafusos soltos, na velha louca que dava nomes aos pombos e os alimentava todos os dias com os restos de seu almoço, na anãzinha, filha do eterno candidato a vereador, que desafiava qualquer um a sair na porrada. Tudo gente boa e ordeira.

Esse mundo que já não existe, para mim nunca passou. Ele foi e é o contraponto de uma vida interior que se fez não a despeito de tudo isso, mas por causa disso tudo. É claro que eu só posso dizer isso olhando retrospectivamente; no tempo, minha atitude e minha convicção eram de negação quase completa: eu não pertencia àquele lugar, tinha vergonha, era inteligente e sofisticado demais para aceitar aquela vida mesquinha. Mas aquela vida, sem maquiagem, sem diálogos bem pensados, tosca, pobre, era já a vida inteira, comendo o almoço com colher, na cozinha, ao pé do fogão, soltando belos assopros de guaraná Jesus. Foi por causa dessa vida que eu nunca me rendi ao elitismo besta, e foi por causa dela que a consciência do ridículo, do absurdo, do mágico, do grotesco, da gratuidade da existência, penetraram em mim e nunca saíram.

Lá em baixo, o mangue, onde a molecada alugava canoas e descia um braço do rio Bacanga até chegar ao sítio de uma velha para roubar frutas e, eventualmente, escapar de um tiro de sal.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Jesus, que diabo é isso?

Tem umas coisas na vida da gente que fazem pensar o que é bom e o que é mau, o que salva e o que mata. Um remédio amargo é bom, mas um delírio, por mais doce que seja, é sempre um delírio. É óbvio, mas o povo continua pensando que berimbau é gaita. Resultado: muita gente mordendo o arame.

Quando Jesus estava terminando de se preparar para sua missão, ele foi passar uma temporada com o diabo, só os dois, no meio do deserto. Pensem nisso: ele foi ter uma conferência privada com o capeta! Que nesse angu tinha caroço, é lógico que tinha; mas, de que tipo? Vou arriscar responder – à la diable, como de costume.

Que o diabo não é tão feio quanto lhe pintam, todo mundo sabe. O que a maioria não sabe é o quanto o diabo é bonito. O grande mentiroso, o grande sedutor, não pode se apresentar por aí com cecê de enxofre, pele de náufrago holandês nas Antilhas e portando um par de cornos retorcidos. Daí ele caprichar no visual, usar um bom perfume, falar macio palavras bonitas e estar sempre pronto a romper em entusiasmo e generosidade. Não à toa a lenda reza que ele é um excelente e vigoroso amante.

Mas o diabo é velho, e por ter arrastado muito a barriga pela terra toda, sabe na pele de coisas que até Deus duvida – porque Ele fez a criação, mas foi o que-diga que saiu para explorar. O diabo tem mapas, e os mapas, como se sabe, não são o território. Minha teoria, então, é que Jesus foi lá não para pegar com ele um mapa qualquer, mas para aprender a arte ancestral da cartografia.

Prestem atenção, que essa é a diferença entre a pílula azul e a pílula vermelha: não adianta ser dono do infinito e da eternidade se você não souber onde as coisas terminam e onde elas começam. Fazer mapas é traçar essas linhas, e traçá-las de modo não arbitrário, ou seja, contra a tentação suprema de quem tem a onipotência.

O que eu estou dizendo, em resumo, é que Jesus foi ao deserto para aprender a se controlar, e só com isso ele pôde sair por aí fazendo ungüento de cuspe para cegueira e outras coisas malucas. E esse negócio, pessoal, é sério, muito sério, por duas coisas, principalmente.

Uma, é que não adianta ficar lidando com os “próprios demônios” – e Jesus, como homem, estava sujeito a eles. Essa é a ralé exibida dos poltergeists da vida, dos desvarios, dos ataques histéricos, e deles não se aprende nada, ou nada que valha muito. Portanto, não adianta “abraçar o seu desejo”, acolher o seu doce demônio, por mais natural e saudável que isso pareça: é preciso ter um cara-a-cara com o coisa ruim em pessoa. E sabe o quê? O diabo, sozinho, não existe, é um nada – pergunte a Riobaldo. O diabo é um vazio, e não um buraco, que buraco são as bordas. Por isso o lugar dele é o deserto.

A outra coisa é que esse encontro quase sempre é mortal. Ninguém que vá à presença do demo pensando que vai ter dois dedinhos de prosa, virar as costas e picar a mula. O diabo quer a nossa alma, que é tão fácil de agarrar que ele pouco se dá ao trabalho de ir apanhar ele mesmo, preferindo mandar seus secretários. Jesus, que era o cara, ficou quarenta dias tentando cortar o assunto, até ser forçado a ser grosseiro, recusar o cafezinho com broa do anfitrião e dizer que tinha outro compromisso.

Já termino, proporcionalmente com duas notícias. A ruim é que não adianta ficar no templo (no consultório, dentro de um livro, no playground do condomínio, em mil comunidades virtuais, onde as coisas são não só confortáveis, mas controláveis) ruminando em si o de si. O diabo não vem até você: é preciso que você vá até ele – invertendo a lógica da supremacia – e se resgate.

A boa é que você não é obrigado a fazer isso.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Sem remendos


Não vou dizer que 2009 foi um ano fantástico, incrível, porque minha vontade, no fundo, é dizer que foi uma merda completa. Mas não, não foi. O ano, para mim, foi cheio de enlances e desenlaces que, no fim das contas, deixaram muitos fios soltos. E fios soltos, perceba-se, não são necessariamente ruins, sobretudo para quem tem uma boa tessitura já encaminhada. Quando as tramas não se completam, quandos as padronagens não se encaixam, quando, por uma razão ou outra, os novelos se emaranham e a urdidura da vida não revela um belo feito, algo de que se possa orgulhar e que se possa usar - quando não aparece na outra ponta do tear um cachecol, um gorro ou uma meia que possam efetivamente adornar, aquecer e proteger os pés -, é hora de, pacientemente, sem desespero, puxar as linhas que ainda estão à mostra, para chegar aos nós e desfazê-los, ou cortá-los, salvar o que já está pronto e continuar.

O fato de eu não considerar o ano que passou um ano de merda (e, daqui de dezembro, vejo que 2009 já acabou há um bom tempo), apesar dos diversos eventos calamitosos e exaurientes que o marcaram, se deve fundamentalmente a um reencontro inesperado com certas formas de ação, certos "fusos" meus, uns que estavam esquecidos, outros simplesmente abandonados - ou quem sabe nem tanto o reencontro em si, mas o que este deflagrou em mim. Aqui não é um espaço de confissões, de modo que não me interessa narrar o que seja ou o que deixe de ser, especificamente. Só o que importa, a título de documentação e compartilhamento, é dizer, a quem lê e, por isso mesmo, a mim também, como consegui chegar a essa percepção.

De cara, foi necessário reconhecer (ou seja, conhecer de novo, redescobrir) que estar despido e inteiro diante do que se lhe quer impor como dor, fracasso e desengano, não é uma virtude, não garante coisa nenhuma, não faz de ninguém maior, mais consciente ou menos cego que ninguém. Desmanchar o entramado mal feito, desatar, cortar nós, trocar os fusos, é um imperativo de sobrevivência, um instinto perfeito, a mais adequada reação diante da morte. Quem está despido e inteiro tem que se virar consigo mesmo, sem perhaps, sem embromação, só corpo e espírito contra o que vier.

E é por causa disso, acredito, que quem quer se salvar, se perde, tem que se perder. "Perder" não é se entregar, não é capitular - pelo contrário! "Perder" é se lançar sem medo sobre o que pode te estraçalhar, é estar estraçalhado e não deixar a costura para depois, é atravessar o abismo pelo caminho mais curto, sem rede de proteção, porque o mais longo, com rede e tudo, não compensa. Não estou aconselhando ninguém a ser impetuoso, estouvado, de modo algum! Mas muitas vezes o resultado de uma ação pensada e bem planejada resulta em desastre, enquanto a mira feita pelo canto do olho, vendo sem ver, acerta no alvo. Como saber? Perdendo. Em ambos os casos, contudo, é preciso ter coragem: para aceitar bem como para saber que nem sempre vai dar certo.

"A natureza não premia coisas boas: ela premia coisas eficientes. Se você quer um mundo com coisas boas, seja eficiente protegendo-as", diz o Anarco. Certíssimo: fazer o que tem que ser feito quase nunca é bonito, limpo, bem ordenado, confortável ou fácil - mas sempre compensa. E não se pense que quem já tem um bom acervo de conquistas e perdas é mais capaz de fazer o que é necessario que quem ainda hesita em se atirar ao mundo, porque ninguém gosta de se ferir, e quem já se feriu muito costuma ter mais medo de se ferir que quem ainda tem poucas cicatrizes nas costas. A vantagem de quem já é lanhado - aliás, relativa - é só a de poder dimensionar as coisas num horizonte mais amplo, e com isso poder decidir melhor se vai deixar rolar e não insistir, ou se vai atacar.


O que vai fazer diferença na nossa tecelagem é a ousadia de não admitir remendos à toa, nem cerzidos de conveniência. No desenovelar da história, Átropos, a inexorável, sempre estará de tesoura em punho.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Objetividade, isso é possível?

Hoje levei uma traulitada certeira, dessas boas, que a gente na hora não vê de onde vem – ou melhor, até vê, mas não sabe que pegou até começar a doer. Não vou descrever a ocasião, que não vem ao caso, mas escrevo aqui sobre seus efeitos, a propósito de aliviar-me e entender o ocorrido.

Desde que comecei a ler sobre construtivismo, sobretudo as vertentes sociológicas e cognitivas, o conceito de objetividade se tornou mais fluido, mais fugidio, quase uma quimera. A bem da verdade, eu já havia me deparado com a evidência dessa “realidade construída” bem antes, quando minha paixão maior ainda era a lingüística: meus mestres Jakobson, Hjelmslev, Saussurre e Peirce – sobretudo o primeiro – já me haviam chamado a atenção para a artificialidade do mundo criado pela linguagem, para o descompasso, o vazio entre o significante e o significado. “O mundo é tudo o que é o caso”, dizia Wittgenstein, e o caso, a cada vez, é um encadeamento mais ou menos estável, mais ou menos impalpável, mais ou menos extensível, de “recortes” do real, de “traços distintivos” contingentes, que se fixam pela redundância.



Mas não me interessa tanto esse papo cabeça – já acrescentando que, nos últimos anos, vinha dedicando minha atenção quase que exclusivamente aos aspectos teóricos da comunicação, fenômeno bem diverso da linguagem. O que me interessa mesmo é que, nessa vertigem da dissolução do “mundo objetivo”, entre o cristal e a fumaça (Henri Atlan dixit), a única opção viável, do ponto de vista existencial, é render-se à lógica paradoxal do simbólico – como já disse, entre outras coisas, na postagem anterior. E o paradoxo é: o “real” só é acessível pela ilusão do simbólico; a certeza, ainda que provisória, do mundo objetivo, só se revela na construção ficcional de significantes essencialmente vazios.

Nada disso é muito “objetivo”, como vocês podem perceber, quer dizer, não tem um “propósito” específico – no que denuncio meu punctum dolens, meu hematoma, minha ferida: a dificuldade em ser “objetivo”. Chegado aqui, obviamente, recuso-me a fazer uma petição de princípio, a reconduzir minhas conclusões aos meus questionamentos – de que me adiantaria perguntar novamente “mas o que é ser objetivo, se a própria objetividade não tem um conteúdo invariável?”? Daí que só a violência/autoridade de um corte – uma decisão que não vacila – é capaz de nos recolocar, precariamente que seja, no domínio instantâneo do real, da literalidade, do aparente do aparente. Acho que é por isso que um velho ditado ídiche diz: “É melhor um tolo completo do que um meio-sábio.”

Infelizmente, isso não elide o fato de que a certeza é apenas um furo na tessitura das incertezas, sob o perene risco de fechar-se tão logo se abra – assim como o desejo é só o índice de uma falta que nunca se preenche, de um vir-a-ser que nunca é.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Les non-dupes errent

“The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere / the ceremony of innocence is drowned; / the best lack all conviction, while the worst / are full of passionate intensity.” (W.B. Yeats, The Second Coming).

“Those who do not let themselves be caught in the symbolic deception/fiction and continue to believe their eyes are the ones who err most.” (S. Zizek, What’s Wrong with Fundamentalism?)



O pato atrás da lente. O pato atrás da tela. O pato atrás da porta, atrás dos óculos, atrás do telefone. O pato atrás da barba. O pato atrás das promessas descumpridas, atrás das contas não pagas. O pato atrás do outro pato, atrás dos arbustos floridos, atrás das bancas de jornal, atrás da fumaça dos cigarros, das cascas das cigarras. O pato atrás dos compromissos, do encontro sempre adiado, da partida sempre adiada. O pato atrás do vidro escuro do carro, atrás do volante, preciso e frio como um laser de gelo. O pato atrás das vitrines dos shopping centers, de olhos vidrados no nada. O pato atrás da sombra que desliza sobre o corpo sonolento, crispado de terror e fascínio. O pato atrás das cortinas, num dia de sol, longe da areia e do tumulto. O pato atrás de seja lá quem for, cheio de amabilidades e sorrisos. O pato atrás da cama, erguendo o chicote. O pato atrás da palavra dura, da notícia dura, no último minuto. O pato atrás do furo do furo do furo, no fundo, segurando seu nome dentro da boca que se abre, muda. O pato correndo, atrás da hora que se esvai.


Quem paga o pato também apaga o pathos?