segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Minhas raízes alemãs


Decidi aproveitar essa postagem, que restava à toa aqui entre outras que não tive coragem de terminar, para retomar as atividades desse blog preguiçoso e iniciar o ano como quem segue adiante sabendo de onde vem. Agora, nel mezzo del cammin di nostra vita, e sabidamente endurecido o lombo por peia forte, a noção de recomeço, para mim, se mais grave e visceral, é porque justamente sem ilusão - embora jamais sem sonho.

Eu sou de São Luís do Maranhão, nascido e criado num bairro de periferia chamado Alemanha, que, dizem as crônicas, ganhou esse nome por conta dos padres alemães que controlavam a paróquia local de Nossa Senhora da Glória. A rua em que eu passei toda a infância e a maior parte da adolescência foi durante bastante tempo conhecida pelo nome de uma obscura personalidade, um tal Benedito de Alencar Campos, mas, ainda na primeira metade da década de 80, alguma alma imaginativa, por razões também obscuras, decidiu que Minas Gerais era um nome melhor - e ficou sendo. Depois de tombar em uma ladeira íngreme, e não sem antes despir-se devidamente do asfalto, como convém, a rua Minas Gerais mergulha de cabeça no mangue, para, em sua continuação imaginária por sobre a maré e a lama e os caranguejos e as palafitas, terminar no antigo portinho da Carioca, onde hoje fica uma construção branca e cinzenta com eventuais amarelos e jeitão de fábrica, que acontece de ser o Hospital Sarah Kubitschek.

Os tipos e as histórias do bairro Alemanha estão entranhados em mim, no meu imaginário, nos meus sonhos e pesadelos, e perduram nos interstícios do meu eu construído - em trejeitos, chistes, automatismos e idioletos. Percebo isso com frequência, por evocações claras e fugidias que costumam ocorrer no quase nada de tempo entre o pensado, o dito e o feito. Estão aqui: o carroceiro que me me fez descobrir a compaixão, estalando o chicote sem dó num gobilo novinho enquanto gritava "chiba!"; o bêbado que me mostrou, de uma só lapada, o que era auto-ironia, auto-comiseração, e circunspecção - Mariano, de olhar silencioso enquanto, sóbrio, aguentava os moleques que o aporrinhavam quando chafurdava na manguaça e lastimava sua condição pelas ruas, aos berros; a reputada feiticeira, D. Maria Fungá, que instilou em mim o medo e o fascínio pela macumba, pelo oculto, aparecendo na missa de domingo cedo com sua boca de poucos dentes e uma touça de pano na cabeça, depois de ter passado a noite anterior uivando no quintal; o ladrão de galinhas e maconheiro contumaz Batman, sem camisa e de olhos esbugalhados, que aproveitava a fama de mau adquirida depois de um breve período na penitenciária por mixaria para achacar os desavisados, e que me fez aprender a não ter medo sem precisar ter; a mocinha liberal, sempre com um quase nada de roupas, que atendia pelo singelo apelido de Maria Tanajura, professora de uma geração inteira que, graças a ela, pôde aprender o que é o poder de uma imensa e perfeita bunda de mulata. Isso para não falar nos cornos contumazes, nas marocas clássicas, de janela e alpendre, nos viados caricatos, no sempre sorridente filho da dona do puteiro local, com seus 12 graus de miopia e vários parafusos soltos, na velha louca que dava nomes aos pombos e os alimentava todos os dias com os restos de seu almoço, na anãzinha, filha do eterno candidato a vereador, que desafiava qualquer um a sair na porrada. Tudo gente boa e ordeira.

Esse mundo que já não existe, para mim nunca passou. Ele foi e é o contraponto de uma vida interior que se fez não a despeito de tudo isso, mas por causa disso tudo. É claro que eu só posso dizer isso olhando retrospectivamente; no tempo, minha atitude e minha convicção eram de negação quase completa: eu não pertencia àquele lugar, tinha vergonha, era inteligente e sofisticado demais para aceitar aquela vida mesquinha. Mas aquela vida, sem maquiagem, sem diálogos bem pensados, tosca, pobre, era já a vida inteira, comendo o almoço com colher, na cozinha, ao pé do fogão, soltando belos assopros de guaraná Jesus. Foi por causa dessa vida que eu nunca me rendi ao elitismo besta, e foi por causa dela que a consciência do ridículo, do absurdo, do mágico, do grotesco, da gratuidade da existência, penetraram em mim e nunca saíram.

Lá em baixo, o mangue, onde a molecada alugava canoas e descia um braço do rio Bacanga até chegar ao sítio de uma velha para roubar frutas e, eventualmente, escapar de um tiro de sal.

2 comentários:

Anônimo disse...

E HOJE eu ia reclamar da falta de posts...

Tudo o que eu consigo pensar lendo esse post é, guardadas as devidas proporções, da minha infância na fazenda/interior.

Parando pra pensar agora na dualidade que eu trago dentro de mim "periferia/centro" eu entendo com mais facilidade um fato: Dinheiro não traz felicidade. Falta de dinheiro também não. As pessoas sofrem nos mangues e sofrem nos condomínios.

Porque você nunca vai ter o suficiente, se sentir satisfeito, com uma coisa que você não quer. E você nunca vai saber o que você quer se não souber quem você é.

F. Gomes disse...

Olha como são as coisas, hehehe, justo hoje me saiu essa. Você está certo: "miséria é miséria em qualquer canto", e não me refiro àquela que se opõe à riqueza material. A Alemanha, para mim, como o sertão para Rosa, guardadas as incomparabilidades, era o mundo.

Não sabia que você tinha raízes rurais... Olha como são as coisas...