quinta-feira, 15 de abril de 2010

Quod superius, quod inferius



Quem me conhece minimamente sabe do meu interesse por assuntos ligados à chamada “filosofia natural”, não propriamente o antigo ramo filosófico de investigação dos fenômenos da natureza que degenerou na ciência moderna, senão o seu sentido medieval e renascentista, derivativo, metonímico: filosofia natural, denominação que se costumava dar ao conhecimento cerimonial dos antigos, à ciência régia, a arte sacerdotal oculta de domínio do grande Arcano – expressão com a qual se podia convenientemente descrever um circunlóquio sobre a idéia profana de magismo. Cornelius Agrippa, Paracelso, Ramon Lull, Francis Barret, Tritemo, Guillaume Postel, Swedenborg, e, sobretudo, o abade Alphonse Louis Constant, ou Eliphas Levi Zahed em sua cognominação cabalística, foram, entre outros, meus instrutores de filosofia natural, de quem adquiri um conhecimento que continua sendo muito importante em minha vida.

Mas antes que algum engraçadinho se meta a querer me espinafrar, já adianto que nada mais longe de mim que pretender pagar uma de Paulo Coelho: chuva eu nunca produzi nenhuma, nem a dourada, e ventania mesmo só uma bufa ocasional. E muito embora se afirme que por meio desta ciência o adepto consiga se investir de um tipo de onipotência relativa, tornando-se capaz de agir num nível além da medida comum dos humanos, coisa de que eu não me encontro em posição de duvidar, meu interesse, pelo menos aqui, é outro, mais específico, mas não menos assombroso, a saber, a criação do homem por si mesmo e a plasticidade do real. Percebam que nada há de sobrenatural nisso, até porque o magismo jamais poderia admitir a idéia absurda e supersticiosa de um poder contrário às leis universais: “A magia é a ciência tradicional dos segredos da natureza, que chega a nós pelos magos,” sintetiza Levi em seu Dogma. Aliás, a investigação histórica mostra que na raiz da física e da química de hoje está a velha alquimia e sua metafísica.

Em outras palavras, o conhecimento mágico se propõe não a suspender ou abrir parêntesis nas leis naturais, a operar “milagres”, mas a dotar o homem de meios de se transformar naquilo que os cabalistas chamam microprosopo, ou seja, o criador do pequeno mundo - criador de si mesmo e de uma vida interior imortal, e assim de tudo que o circunda. Diz-nos Levi:


Le mage est véritablement ce que les cabalistes hébreux appellent le microprosope, c’est-a-dire le créateur du petit monde. La première science magique étant la connaissance de soi-même, la première aussi de toutes les œuvres de la science, celle qui renferme toutes les autres et qui est le principe du grand œuvre, c’est la création de soi-même.



Ora, logo na primeira das iniciações do Dogma, Levi nos declara que o instrumento de realização da grande obra é a palavra, o verbo. Invertendo o cogito cartesiano, ele expõe a base primitiva de sua filosofia experimental: "Eu sou, logo o ser existe". Assim, ao afirmar ego sum qui sum, Deus se revela no homem, e o homem se revela no mundo. O verbo, a palavra verdadeira, para o homem, é a manifestação uníssona de seu ser, de sua inteligência e de sua vontade. E a inteligência e a vontade, por sua vez, têm como ferramenta auxiliar a imaginação, o olho da alma, meio onde se desenham e conservam as formas. A palavra, apoiada na imaginação, é o que transforma o mundo.

Muito bem.

Esse curso de idéias, por enviesado modo que seja, me leva a outro mago mestre meu, verbo poderosíssimo, inventor e reinventor de mundos, que foi quem primeiro me deu o mote dessa postagem, com a releitura que fiz outro dia desses da minifábula “Desenredo”, em Tutaméia. Rosa, não sei se sabem, mas são palavras dele, era um místico: “Sou místico, pelo menos acho que sou”, disse certa vez, acrescentando:


Eu não sei o que sou. Posso bem ser cristão de confissão sertanista, mas também pode ser que eu seja taoísta à maneira de Cordisburgo, ou um pagão crente à la Tolstói. No fundo, tudo isto não é importante. Como homem inteligente, às vezes pode-se sentir necessidade de se tornar um beato ou um fundador de religiões. A religião é um assunto poético e a poesia se origina da modificação de realidades lingüísticas.

Sim, poiesis, o ato de criar – para Deus e para o homem, pela palavra. E não a palavra grega do logos, cálculo, pensamento, mas o davar hebraico, palavra-coisa, palavra-ato, falar-fazer. Por ela o homem é muito mais que mero súdito de Deus, fazendo-se demiurgo junto Dele e compartilhando da responsabilidade por aperfeiçoar Sua obra, num vir-a-ser que só é possível porque a contrapartida da vontade divina é o livre-arbítrio humano. Este falar-fazer é a aliança de parceria entre Deus e os homens, que começa com Adão, a quem foi reconhecido o direito de nomear o mundo, e se consolida com Noé, que salva para Deus a criação e com isso legitima sua participação na empreitada. O homem é chamado a agir diante da incompletude e da falibilidade, e Rosa também sabia disso:

Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original....


Mas, e se o passado estiver errado?


Mude-se o passado, pois! Quanta incredulidade...


Jó Joaquim não teve dúvidas. Importava-lhe, mais que tudo, "por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos", operar o passado, "plástico e contraditório rascunho", para criar "nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?" Não quis saber - fez, só. De convencimento em riste e livre de acabrunhos, declarou que "todo abismo é navegável a barquinhos de papel", em perfeita inteligência sentida de que "o trágico não vem a conta gotas", mas também de que "haja o absoluto amar - e qualquer causa se irrefuta." Jó Joaquim imaginou, e falou - e fez-se.

Bem, não vou lhes frustrar a leitura do conto - se não para entender melhor o que eu quis dizer, ao menos pela curiosidade e o prazer de ler uma obra primorosa.

Eu acredito no poder das palavras - não como um dia jactou-se Poe, in the mad pride of intellectuality, apenas para cair nas mãos do indizível, mas como a própria linguagem do indizível, como poesia (Goethe: "Poesie ist die Sprache des Unaussprechlichen"). Dela retiro a matéria do meu eu secreto e dela me cubro perante o mundo. E sigo sendo.

2 comentários:

Anarcoplayba disse...

Aparentemente, é uma tendência dos grandes artesãos deixar suas obras inacabadas.

Dizem que a grande pirâmide não tinha a pedra do topo.

F. Gomes disse...

Precisamente! E, pelo infalível e sempre preciso sistema das conexões randômicas, seu comentário me remeteu à "Criação Imperfeita" do Marcelo Gleiser...