quarta-feira, 7 de maio de 2008

Integralmente


Esta semana, pela primeira vez, estou cuidando sozinho de minha filha de 4 anos. Minha ex-mulher viajou para Fernando de Noronha, e como minha família toda está no Maranhão e a dela em São Paulo (com exceção da mãe, que mora em BH, mas com quem não se pode contar muito...), claro está que o deleite da digníssima se faz às custas do papaizinho aqui. Antes, porém, que o leitor inadvetido adivinhe em mim uma má vontade que não existe, devo informar que sou um pai presente e participativo, do tipo que troca fralda, dá banho, penteia, veste, corta unha, alimenta, brinca, passeia, leva para a escola e se intera do que acontece por lá, faz oração antes de dormir, coleciona desenhos etc. Isso para não dizer que divido todas as contas, além de gastar uma fortuna todos os meses com as "coisinhas" que ela me pede quando está comigo.

Na verdade, o que gerou meu desconforto inicial com a situação, agora vejo, foi o medo de não poder dividir a responsabilidade pela criança com ninguém - muito mais do que o fato de que tenho uma montanha de coisas para resolver esta mesma semana, incluindo, entre outras coisas, a obrigação de montar um curso de Direito Constitucional Comparado, e a desesperada necessidade de planejar aulas de metodologia da pesquisa científica e didática do ensino superior, que devo ministrar na sexta-feira e no sábado.

Nunca imaginei que pudesse novamente sentir falta da minha ex-mulher, mas é precisamente esse o caso. Não por ela como gente, em si mesma, claro, mas pelo que ela representa na dinâmica da minha vida atual. Foram quase oito anos de casamento, que renderam uma criança linda e com ela todas as implicações que assumem pais amorosos e comprometidos, mas que não me comovem em nada como lembrança afetiva. De qualquer forma, não consigo nem imaginar como seria a minha vida se ela decidisse entrar para a União do Vegetal e mudar para o Acre, deixando a Clarissa por minha conta. Ou melhor: consigo e não gosto nada.

A Renata é uma mulher muito inteligente, experiente, viajada, uma profissional respeitada e competentíssima, que não é linda, mas tem seus encantos, além de ser filha de um senhor milionário, com mais de oitenta anos e um câncer no intestino. Quando eu a conheci, eu vinha de um longo período de hedonismo desenfreado, que se seguiu a um relacionamento de quatro anos, cujo final me deixou bastante depauperado. Estava em grande forma física, ganhando bem, morando sozinho numa casa linda e enorme perto da praia, tinha um bom carro, e vivia cercado de amigos e admiradores diversos. Minhas pretensões artísticas estavam em evidência na época: eu tinha um pequeno estúdio montado dentro de casa com os equipamentos de parceiros, que estavam sempre por lá, compondo e tocando, e o espaço virou uma espécie de reduto da malucada. Com tanta afluência, não havia muito tempo para o tédio em minha vida.

A despeito disso, para mim, na época, ela era a mais óbvia das opções. Eu estava cansado de garotas bonitas e loucas ou burrinhas, assim como das interessantes mas problemáticas ou rodadas demais. Tinha também receio de me tornar excessivamente cínico, bem como uma inveja disfarçada dos meus amigos que tinham namoradas "sérias". Renata, apesar de ser amiga de amigos meus, nunca me tinha sido apresentada, e talvez por isso mesmo não tivesse maiores resistências a um envolvimento - quer dizer, até que tinha, mas por outras razões. Já então ela havia solicitado no serviço sua transferência de volta para BH, e entre o começo do namoro e minha decisão de me desfazer de tudo e vir atrás dela não chegaram a se passar 6 meses.

Eu nunca vou diminuir a importância que ela teve para que minha vida adulta "engrenasse". Ela me ajudou a entender que não adiantava eu ter um grande potencial se não projetasse uma imagem de poder; que era preciso que eu fechasse meu campo de recorrências em um foco e abandonasse meus pendores enciclopédicos; que não havia nada de mal em traficar favores e se valer de influências; que eu tinha que engolir sapos se quisesse comer os outros pratos da refeição; e que dinheiro não traz felicidade, mas garante tanto entretenimento que, no fim, a gente acaba nem percebendo que é triste.

O grande problema é que, nesse processo, eu fui perdendo minha espontaneidade e meu tesão. Eu era um eterno devedor, e tudo que eu fazia ou não prestava, ou era incompleto, ou nunca era mais que apenas suficiente. Entrar no mestrado em Direito da UFMG e receber propostas de emprego uma atrás da outra não passava de minha obrigação. Consertar chuveiro, fixar prateleiras, instalar tomadas e luminárias, desentupir cano, idem. Não que eu não fosse encorajado e aplaudido, mas, em vez de entusiasmo, eu percebia somente "reforço positivo". Todo prazer possível parecia confluir para a satisfação do dever cumprido. Sentia que minha respeitabilidade ia se esvaziando à medida que as críticas iam se tornando mais severas, mais desabridas, sobretudo porque eu trabalhava boa parte do tempo em casa. Sentia culpa por às vezes ser bobo e desatento. Comecei a me ver como um porcalhão bagunceiro. A porta da rua me foi oferecida diversas vezes como serventia da casa.

Bom, tudo isso é para dizer que a separação foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida. Hoje eu consigo respeitar e até ter carinho pela Renata, e sei que a recíproca é verdadeira. E exatamente por eu estar tão feliz é que eu não guardo rancor ou mágoa, nem trago comigo nenhuma cicatriz. Por outro lado, aprendi muito sobre mim mesmo, sobre o tipo de pessoa que sou e sobre o que eu desejo para minha vida - muito! Aprendi, principalmente, a escutar minhas intuições, a escutar o corpo. E descobri um tipo de amor que me tornou muito mais capaz de amar quem para mim for amável. Esses dias, sozinho com a Clarissa, deixaram isso tudo muito claro aos meus olhos.

Tenho certeza de que essa pessoa linda, por quem meu amor já começa despontar, se estiver disposta a me amar também, vai ter um homem excelente, pelo tempo que quiser - não para completá-la ou para ser completado, mas para estar inteiro ao seu lado.

3 comentários:

Junkie Careta disse...

A discrição me impede de fazer cmparações meu marcante amigo. Posso lhe dizer que tenho uma filha de 1 ano e 3 meses que herdou a curiosidade e o rosto do pai e teve a inteligência de ter o corpo da mãe. Conviver com minha filha, me faz aprender que sair da casa, (demasiadas vezes desconfortável) de mim mesmo é imperativo pra fazê-la feliz e que esquecer-se pode ser grande prova de amor. Lembra do nosso velho amigo Nietzche quando dizia " Amo aquele que cria qualquer coisa superior a sí, e dessa arte sucumbe..." . A minha compreensão é que as pessoas criam essas coisas superiores a sí. Algumas optam pela poesia,música, outros pelo dinheiro, pelo hedonismo, pela loucura(do qual conhecemos alguns bons impulsos, parafraseando aquele outro poeta que escrevia como você aos 15 anos), e, para ser um homem comum,ter filhos, é como diz aquele famoso clichê: é padecer no paraíso. Eu que esporadicamente padeço, descubro duas coisas: Uma é que, se eu não torná-la parte dessa coisa "superior a mim", aquele ocioso ser que habita em mim(pelo visto, bem diferente de você, que é tão atuante)vai acomodar-se no seu onipresente conforto e vai perder a chance de abraçar o paraíso, brincar com o paraíso, trocar fraldas do paraíso e no final da noite ter o presente de dormir abraçado com o paraíso e vê-lo inocentemente dizer: pai.

Não sei se estou envelhecendo e perdendo os impulsos(Rimbaud filho da puta...).

A segunda coisa é que, por mais antagônico que possa ser, eu não sabia que eu tinha tanto amor assim dentro de mim.

Parabéns, sua filha é linda.

Que o tempo se encarregue de lustrar a nossa amizade de cobre que trago guardada em alguma prateleira onde coloco a minha prataria mais valiosa.

Grande abraço

Anônimo disse...

Esse texto transborda aquilo que você afirma não ter: mágoa. Ele não é digno de você, de mim, da nossa história e muito menos da parceria que nos propomos em relação a nossa filha. O fato do amor ter acabado, não significa que temos que fingir que ele nunca existiu.

F. Gomes disse...

Ihhhh....