segunda-feira, 9 de novembro de 2009

De novo, o ponto cego




Não se pode ver que não se pode ver o que não se pode ver. Na tragédia, essa máxima de que não se escapa vem com um toque de ironia: o herói trágico, à despeito de sua cegueira quanto ao destino, convive com um tipo de inversão de causas e efeitos que coloca a inteireza de seu infortúnio bem debaixo do seu nariz, sempre. Ele não pode ver não porque não queira ou não se esforce para tanto, mas porque aquilo simplesmente lhe escapa, porque é o domínio escuro das Moiras, do insondável, do inevitável. Somente o espectador, aquele que de fora frui o gozo lúgubre da tragédia, pode enxergar e compreender a extensão da catástrofe que se avoluma sobre a cabeça do infeliz desafortunado. O espectador, contudo, nada pode fazer, pois a sua própria condição pressupõe não lhe ser dado interferir na trama - do contrário ele faria parte desta, e seria igualmente cego. Não há esperança possível para o herói trágico: resta-lhe apenas evadir-se, sabendo-se esvaziado de si mesmo nas mãos dos deuses que governam o seu destino.


Essa mesma lógica se aplica, ao menos em parte, à catástrofe amorosa. Não me refiro, é claro, ao "desespero lento", à "resignação ativa" de quem diz "amo-te como é preciso amar, em desespero", mas ao desespero violento e intratável de quem se descobre - mais que preterido - rechaçado (sexualmente: "o infantil - ver-se abandonado pela Mãe - passa brutalmente ao genital", como diz Barthes). Tudo estava ali, à vista, mas fora dela: e o desejo confessado de uma selvageria livre e dona de si se torna, à socapa, o jugo de uma dominação execrável - e como é de toda verdadeira tragédia, causas e efeitos se confundem.


Mas para o amante desgraçado, à diferença do herói trágico, a cegueira, vindo a trambolhões, desmorona silenciosamente em um incontrolável e soluçante "por quê?". O amante não se rende ao destino, não se entrega aos deuses, ou pelo menos não de imediato, quando lhe é desferido o golpe da consciência de sua situação - ele não pede, como Édipo, o exílio. Ao contrário, ele repete obsessivamente um "por quê?" que se volta sobre si mesmo, como um cão que corre a esmo atrás do próprio rabo. Isso não faz com que sua tragédia seja maior, ou mais doída, senão revela o seu caráter psicótico. E aqui deixo de falar eu mesmo (que sintomático!), para deixar falar de novo Barthes, de quem traduzo, mal e mal, um trecho de seus "Fragmentos":


"A verdade é que - paradoxo exorbitante - não paro de crer que sou amado. Alucino o que desejo. Cada ferida vem menos de uma dúvida que de uma traição: porque não pode trair senão quem ama, não pode ter ciúmes senão quem crê ser amado: o outro, episodicamente, falta a seu ser, que é o de amar-me - eis aqui a origem de minhas desgraças. Um delírio, no entanto, só existe se despertamos dele (só existem delírios retrospectivos): um dia compreendo o que me ocorreu: cría sofrer por não ser amado, e, no entanto, sofria porque cría sê-lo; vivia na complicação de me crer, a um tempo, amado e abandonado. Alguém que tivesse entendido minha linguagem íntima só poderia exclamar, como se faz com uma criança birrenta: mas, enfim, o que queres?"



Por enquanto, contudo, apenas tento manter afastados os móveis e cravar os dentes numa toalha qualquer, para não decepar a língua. E aguardo.

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